FUMAÇA MÁGICA

HUGO CARVALHO*

 

Arte e Prazer para os bons momentos da sua vida

 

125 GUERREIRO DOS CHARUTOS 03/05/04
124 A MULHER E O CHARUTO 22/04/04
123 CHEIRO A HOMEM 12/04/04
122 PUROS AMIGOS 31/03/04
121 LINGUAGEM 18/03/04
120 ANOS & AMANTES 09/03/04
119 ITAPEMA 27/02/04
118 PUROS MASCADOS 16/02/04
117 SINFÔNICA BELEZA 30/01/04
116 MERCADOR DE PUROS 21/01/04
115 HOMEM COMUM 09/01/04
114 A (IM)PERFEIÇÃO 30/12/03
113 ÁRVORE DE NATAL 22/12/03
112 SOU DO PC 17/12/03
111 SAUDADES 08/12/03
110 SÁBADO COMPLETO 29/11/03
109 ÓCIO PRAZEROSO 17/11/03
108 IN MEMORIAM 04/11/03
107 CARNAVAL E CHARUTOS 28/10/03
106 EPÍTETOS 15/10/03
105 CHARUTO AO LUAR 06/10/03
104 AS PIRÂMIDES 29/09/03
103 AMAR E FUMAR 17/09/03
102 NOVA MUSA 11/09/03
101 PRIVILEGIADOS 06/09/03
     
 

FUMAÇA MÁGICA - CRÔNICAS 150 ATÉ 200

 
 

FUMAÇA MÁGICA - CRÔNICAS 125 ATÉ 150

 
 

FUMAÇA MÁGICA - CRÔNICAS 051 ATÉ 100

 
 

FUMAÇA MÁGICA - CRÔNICAS 001 ATÉ 050

 

125.    GUERREIRO DOS CHARUTOS

Dia desses, meu charuto me indagou donde venho. Tinha-me por baiano por viver na Boa Terra  há quase quarenta anos. Tendo lhe dito haver nascido no Rio Grande do Sul, o puro amigo, curioso, quis saber-me se nobre ou plebeu.

Confidenciei-lhe fatos trazidos pelas bocas dos mais velhos. Bocas que já se calaram há muito, mas cujos falares, misturados à névoa do meu charuto, ainda ecoam na solidão da sala do meu recolhimento.

A guerra, o gado, o peixe e o desejo de dias melhores explicam a história dos meus e, por extensão, a minha.

Meus avós paternos, de prosaico nome familiar Carvalho, de Trás-os-Montes, onde habitava a riqueza da pobreza portuguesa, vieram para o Brasil nos anos de mil e oitocentos e segundo império. O velho era artesão nas coisas do couro, correeiro como se dizia à época, e buscou inicialmente o interior paulista, aonde veio a nascer meu pai. Em começos do século passado partiu, com armas e bagagens, para o Rio Grande do Sul onde era farta a oferta de matéria prima para o seu ofício. Fixou-se lá pelas bandas de Pelotas onde havia grandes charqueadas e portanto era abundante o couro. Pelo prisma paterno pois, se vê que um pouco de minha origem está no gado e na aspiração de melhores dias.

Do lado materno meu tataravô era baiano e plebeu. Tanto que foi “convocado” para combater na Guerra do Paraguai. Teve a sorte dela sair com vida. De lá retornando, desembarcou em costas catarinenses. Começou vida nova nos lados onde hoje se situa Garopaba.

Não sei se deixou amores e parentes na Bahia. Esqueceu os seus e por eles, por certo, foi dado por morto. À época eram abundantes as baleias e livre a pesca. Dedicou-se ao mar, constituiu família e legou a profissão a seus filhos e aos filhos dos seus filhos.

Minha avó, neta dele, me contava que, quando menina, ficava no promontório elevado à borda da enseada a qual chamavam de “Vigia” e lá, enquanto brincava, vigiava a chegada das baleias, correndo morro abaixo para ir avisar a chegada das mesmas, ao pessoal da pesca. Teve uma única filha, em Garopaba, nos anos vinte do século que já se foi, minha mãe. O Bittencourt materno que me chegou, proveio de meu avô, um catarinense com patronímico dos franceses da pequena colônia destes, existente na terra dos “barrigas-verdes”. 

Os catarinenses pescadores costumavam migrar para a cidade de Rio Grande, onde “deitavam suas redes” na então, abundante pesca de tainhas. Meus avós para lá foram. Vê-se pois que pelo lado materno um pouco de minha origem está na guerra e na pesca.

Tudo pronto, portanto, para o nascimento deste gaúcho ocasional.

O qual, seguindo a tradição, como herdeiro das vocações de seus avós, aspirando melhores dias, acabou na Bahia, trabalhando que nem um boi, e se transformando num guerreiro dos charutos e num escriba-pescador de ilusões.

Meu charuto se confessou satisfeito com as explicações.

124.    A MULHER E O CHARUTO

Conheço algumas mulheres que fumam charutos. E que o fazem com charme e perfeição.

A minha, infelizmente, não. Abstêmia e antitabagista por excelência, tem em mim seu alter-ego. Fumo por nós dois. E o faço escancaradamente, malgrado eventuais admoestações quanto à minha idade, etc e tal. Classificar como eventuais as reclamações da distinta é complacência minha.

Rodeado que sou, familiarmente falando, por não fumantes e não bebedores (esses nem tanto), numa ilha de fumo me transformei, em meio a um mar de incompreensíveis abstinências.

Do alto do meu Robusto, minha marca comportamental registrada, dardejo os pobres mortais que me rodeiam, ignara plebe que desconhece as boas coisas da vida. Vive sem viver. Vegeta?  

E quando então, me deparo com uma mulher fumando charutos, vejo que nem tudo está perdido.

O masculino vira feminino, quando de lábios rubros de batom, boca entreaberta, a mágica fumaça do puro se evola espiralada. Tênues nuances azuladas tentam esconder, em vão, a beleza da face e o encanto do gesto.

Aos homens, os masculinos puros.

Às mulheres, os femininos encantos. Que a mim encantam quando fumam puros.

123.    CHEIRO A HOMEM

Rotina quase consagrada, aos domingos dedico os momentos que antecedem o almoço para, com uma taça de vinho e um puro, deliciar-me na paz do lar. Ausente de preocupações, encareço gentilmente à mulher que não me interrompa com seus cuidados e dominicais comentários.

É uma das santas horas do pensar nos meus charutos e falar deles.

Um dos meus guris, como quase sempre acontece, indaga o que estou fazendo. Com uma folha de papel e um lápis me imita, escrevendo. Garatujas inteligíveis apenas por quem como ele, que tenha cinco anos ou, como eu, um pai afeito a hieróglifos infantis. Ele está aprendendo a viver. No futuro, por certo, guardará destes momentos, a melhor das lembranças.

A mulher, passando ao largo, elogia o aroma do meu puro. Ela, embora não fume, sempre acerta em cheio, com sua apurada sensibilidade olfativa, quando o charuto está de fato excepcional.

Já me vi flagrado por ela, algumas vezes, impondo restrições ao sabor da fumaça do meu charuto, e me questionando se o mesmo estaria bom de fato. É quando me dou conta que ela tinha razão. Azar do puro. Sorte minha.Troco-o por outro.

A propósito, este negócio de mulher versus charuto tem nuances especiais.

Há aquelas que os amam – minoria estatisticamente ínfima -; há as que os toleram – uma minoria relativa – e há as que os odeiam – a expressiva maioria.

E nós, os homens que não vivemos sem elas e sem os charutos, somos obrigados a navegar neste oceano de incompreensões. As mulheres com as quais convivi neste quarto de jornada secular em que fumo puros, todas não fumantes, sempre respeitaram meu companheiro como parte integrante da minha vida, e sempre aprenderam a admirar meu hábito. Nunca enfrentei problemas do tipo “ou ela ou o charuto” pois sempre soube distinguir que uma e outro têm seus momentos certos.  Os quais, a depender do caso, não necessitam ser coincidentes. Aliás, este negócio de estar com ela ou com ele ao mesmo tempo, me parece meio complicado. Para falar a verdade, no fundo, no fundo, quanto estou com ele não quero saber dela. E o bom é que ela sabe disto. E não me aporrinha com ciúmes ou restrições.

Outro dia, a um amigo que confessara ser obrigado fumar as escondidas de sua noiva, aconselhei deixa-la enquanto era tempo. Caso contrário, casando-se, teria que viver, com os charutos, um amor segundo e oculto. O que convenhamos, é quase impossível.

E mais, que não me venham os apólogos das contemporizações, com soluções mirabolantes do tipo goma de mascar e fragrâncias que dissipem – ou disfarcem – o aroma do bom charuto com o qual nos impregnamos ao fuma-los.

Somos o que somos. Com nossos  gostos, nossos hábitos, nossos cheiros, e se quiserem gostar de nós, que nos amem como somos. Os que me amam sabem disso. Cheiro a charuto. Cheiro a homem.

122.    PUROS AMIGOS

Trabalho com charutos, respiro charutos e escrevo sobre eles. Desta tríplice convivência mantemos uma intimidade de nuances quase irreveláveis.

Sendo o meu melhor amigo, na constância, se converteu num confidente, escudeiro, conselheiro e fonte de inspiração. Ora, nos momentos em que isolo, ele fala comigo. Ora, nos momentos de atividade, ele me acompanha silencioso. E, neste último caso, nunca reclama quando o esqueço depositado num cinzeiro.

Cinzeiro é força de expressão. Quase sempre o deixo à beira de uma mesa ou de um balcão, no peitoril de uma janela, ou em qualquer outro lugar plano que encontre pela frente.

Imerso nas preocupações do dia a dia, perco a noção donde o deixei. Mas, as saudades chegam rápidas. Parto em busca dos habituais e inusitados lugares onde o esqueço. E, a depender de como ele “estava”, não descanso enquanto não o reencontro.

Via de regra, já está “calado”. Apagara-se, tristemente, pelo fato de o haver esquecido.

Acolho-o com o carinho de amigos que se encontram, dispo-o das cinzas mortas e, num sopro de vida, o reacendo para voltarmos a “conversar”.

Você por certo, que deve ter amigos que não vê há muito tempo, sabe dos prazeres do reencontro. Pois saiba que seus charutos, se bem convividos, também proporcionam tais satisfações.

O calor do abraço, o apertar das mãos, o olhar nos olhos, a troca de emoções e sensações e, o que é melhor, a identificação plena.

Identificando-me com Você, pelo denominador comum de nossos charutos, olho seus olhos, aperto sua mão e o abraço calorosamente.

121.    LINGUAGEM

Certo dia, cair de tarde, como de praxe fui para o salão de jogos da Pousada do Centenário. À época eu ainda apreciava uísque. Pelo telefone interno, acionei o pessoal do bar, meus velhos conhecidos e sabedores de minha preferência. O charuto fumegava enquanto o telefone tilintava.

Pronto! Atenderam do outro lado.

Oi filho! Quero que Você traga minha dose etílica vespertina.

Oh seu Hugo, lastimou o atendente, completando, isso não temos.

Que pena lhe disse, traga, então, uma dose do meu uísque.

Foi quando me dei conta do quanto a última Flor do Lácio, com suas sutilezas e riquezas, nos prega peças. O que é uma pena, posto que isso costuma impor limitações, tanto ao falante, quanto ao escriba.

E com meu charuto ao lado, fico me indagando de quantas vezes em minhas crônicas, que de per si não são tão claras, posto serem enfumaçadas, o que bem quis dizer, possa ter sido mal interpretado. Ainda mais eu, que me comprazo, falando de charutos, em brincar com as palavras, deixando nas entrelinhas, muitas vezes, (im)pertinentes insinuações.

Por isso hoje, serei tão claro quanto um Alonso Menendez Claro. O que já complicará nosso diálogo posto que as capas, ditas claras, não costumam ser assim tão claras.

Os iniciados na arte e no prazer de fumar e conhecedores da “linguagem charuteira” , todos sem exceção, já foram vítimas de falsas leituras do seu comportamento e da sua preferência. Por linguagem se entenda não só as palavras. Fazem parte dela os rituais do apalpar, do ver, do levar à boca, do aspirar...

E quantos e quantos “garçons da vida”, amigos nossos, não entendem aquilo que possa ser a dose etílica vespertina. E vêm com interpretações e insinuações totalmente fora do contexto.

Tenhamos cristã piedade deles.

120.    ANOS & AMANTES

Brincado de fazer contas, somei. E me assustei. Não foram os charutos já fumados em minha vida, majestosa cifra, mas ainda distante de figurar no Guiness.

Simplesmente somei a idade de meus filhos. E o caro leitor de minhas enfumaçadas crônicas, há de se indagar sobre a razão de minha surpresa, pois volta e meia, falo de meus dois pequenos infantes, inspiradores dos meus falares.

Que número pois, é esse, tão assustador?

Deixe-me antes acender meu puro. Que como quase sempre é um Robusto. Hoje um Dona Flor. Ele me dará o tempo exato para lhe dizer o que quero.

Havendo tido o privilégio de ter sido pai aos 20, aos 30, aos 40 e aos 60 anos, cheguei aos 10 filhos. Idades variando, hoje, dos 44 aos 03 anos. A soma de suas idades chega, agora, a 290. Aí me dei conta de como e quanto, nossos filhos são agentes multiplicadores de nossas vidas. Afinal tenho, agora, 290 anos de convivência paternal, a qual de ano em ano, aumenta de dez em dez.

Você poderá imaginar o quanto aprendi com meus “meninos”? Duzentos e noventa se diz muito rápido. Mas, medite. São quase três séculos de distintas vivências, das quais tenho participado. E some a tanto, os anos vividos com minhas paixões, com meu trabalho, com meus estudos, com meus lazeres, prazeres e afazeres, com meus charutos. Resumindo, com tudo aquilo que poderíamos chamar de “amantes”.

A palavra “amante”, ao menos no nosso idioma, não tem gênero específico. Meu charuto me diz que isso proveio da inteligência latina. Amante se apresta a todos os gêneros e para ser identificado requer um artigo definido ou não, um pronome possessivo, um adjetivo gentílico ou, sei lá, de algo que o transforme em gente ou em objeto de prazer.

Estou pleno de amantes. Meus filhos, minha mulher, meus teres e haveres, minhas ex-mulheres, meus escritos, meus 14 netos, meu trabalho, meus charutos, meus amigos, o mundo que me cerca.

Nada de pílulas coloridas. Nem divas, nem divãs.

Feliz, vejo com alegria retratadas no espelho, as marcas da existência. E, todas as manhãs, cuido de agradecer ao Divino Mestre, tamanha generosidade por me haver dado tantos anos e tantos amantes na vida.


119.    ITAPEMA

Itapema é um desses lugares a beira-mar nos quais, parece, o tempo haver parado. Este pequeno ponto, encravado no fundo da  Bahia de Todos os Santos, de mar lamento, desfruta de apaziguadoras ausências humanas. Ideal para se desfrutar um puro. Itapema a rigor, não é um lugar, é um paraíso desnudo de vaidades. Não faz parte do circuito das badaladas praias baianas. Carrões, grifes, cardápios afrancesados, ar condicionado, comodidades, asfalto e quejandos, são ausentes. Caminha-se por sobre o capim nativo. Casas simples, erguidas ao tempo de uma extinta usina de extração de óleo de dendê, compõem o cenário-presépio.

Ora vive da pesca. A pele curtida dos nativos revela sangue de raízes sertanejas que, no tempo do tempo do andar-se em mulas, fugia da seca das bandas nordestinas, e vinha em busca de trabalho, na antiga usina.

As novas gerações encontraram, no mar, a sobrevivëncia.

Em Itapema, som só se for nos alto-falantes de um ou outro carro visitante. Não mais do que meia dúzia de bares-empórios forma a rede de abastecimento local.

Distando apenas uns 60 quilômetros de São Gonçalo dos Campos, costumo ir para lá, em sábados estivais. Sento-me à mesa de madeira de um azul que já se foi, no bar do Renato. Somos velhos conhecidos.

Que temos hoje, Renato? A resposta é inevitável. O de sempre.

Tal “sempre” é sempre o que espero. Frutos do mar em variadas formas.

E quais são as novidades, Renato?  Ele, prontamente, dispara. As mesmas!

Essas “mesmas” são tudo o quanto já descrevi.

Acendo meu Alonso Robusto.

Trouxe um para mim? Indaga Renato.

De imediato o acudo. Toma o charuto, entre as mãos, qual relíquia.

Nada conhece da ARTE de fumar. Mas conhece – e como – o PRAZER de faze-lo. Acende o puro ofertado e deixa-se ali comigo ficar, se esquecendo dos outros clientes. Pouquíssimos.

Quem busca agitos, vai para a praia de Cabuçu, uns 20 quilômetros além. Nessa deságuam as gentes de Feira de Santana, para disputar espaço nas barracas sobre as areias onde o mar desmaia.

Em Itapema podemos nos dar ao luxo de eleger um ponto de solidão. Não se queira scotch. Contentemo-nos com uma cerveja. Não se queira um coq au vin. Contentemo-nos com uma mariscada ou uma apimentada moqueca. Copos, pratos e talheres com os quais, certamente, não estamos habituados. Mas que, na companhia de nosso charuto que a ninguém perturba, nos fazem desfrutar delícias esquecidas na cidade grande.

E, na hora de voltar, camarões baratos e fresquíssimos para, em casa, matarmos saudades.  

Mergulhando  no seu oceano de vontades, espero que nossos charutos quando partam da Bahia, lhe levem a inigualável paz de Itapema.

118.    PUROS MASCADOS

Dia desses, me flagrei mascando a ponta do meu puro. Havendo aprendido que a forma “correta”  é se “fumar seco” ou seja, impedindo que a umidade dos lábios se transponha ao charuto, fiquei surpreso comigo mesmo. Estava eu fumando meu charuto à maneira muito apreciada por norte-americanos. Houvera sentado à mesa de um bar, ouvindo um samba de breque num desses feriados da vida, e o puro já se consumira em boa parte, com o bico babado e prensado pelos dentes.

Que coisa horrível! Pensei. Estou contrariando tudo quanto me ensinaram, matutei.

Mentalmente, então, acessei uma de minhas antigas crônicas “Prazeres Sentidos” na qual falara das portas de entrada do prazer.

Ora bolas! Se, ter prazer é dar satisfação aos sentidos, nada de errado.

Eu estava com meus sentidos plenamente satisfeitos mascando a ponta do meu puro. Deixei de lado as autopunições e continuei desfrutando aquele especial momento.

A vida é assim. Ai de nós querermos ser censores da humanidade. As regras estatuídas visam a convivência social. Mas, se tratando da nossa vivência pessoal, cada qual deve ser livre para procurar a melhor forma de estar em paz consigo mesmo. Neste aspecto, sou um tanto quanto anarquista.

Por isso agora, quando vejo alguém imergindo a ponta do seu charuto num cálice de licor; alguém tentando captar o aroma de um puro sem o ter retirado da sua bolsa de celofane ou, mais, quando alguém espreme o charuto, junto ao ouvido, em busca de alguns estalidos, ou ainda, quando alguém em vez de usar a guilhotina, corta a ponta do charuto com as unhas ou com os dentes, e sei mais lá o que, me dou conta que todos estão certos.

Errado estava eu quando houvera me censurado por haver mascado meu charuto.

Há coisas que se pensam, mas não se dizem, nem muito menos se escrevem. Indo de encontro à “regra” lhe digo, escrevendo: Desfrute seus charutos com o engenho e arte que mais lhe agradem.

117.    SINFÔNICA BELEZA

Percorrer-se uma fábrica de charutos feitos ä mão como a nossa aqui de São Gonçalo dos Campos nos faz retroceder no tempo. Modelo funcional de épocas pré-fordianas os puros nascem, unitária e pacientemente, do tato e do toque.

A mim que por mais de 25 anos vivo em tal passado, os olhos já não se surpreendem com a beleza da plasticidade do fabrico. É preciso que um turista-visitante, dos muitos que aqui vêm, entre Oh!s e Ah!s, disparar o flash de sua máquina fotográfica, para aperceber-me, encantado, dos encantos nunca vistos pela maioria das pessoas. Ou é preciso que, acendendo meu charuto, num dos recantos estratégicos da fábrica, deixe o olhar passear naquelas dezenas e dezenas de mãos, espalmando fumos, escolhendo as capas, enrolando os bunches, capeando os charutos, selecionando as cores, colocando os anéis, adornando as caixas.

Uma verdadeira orquestra de gestos, toques, apalpos sincronizados, carinhosamente femininos e delicados.

O puro em que navego em tais ocasiões, não chegou a ganhar o mundo. Consumiu-se no próprio oceano de sinfônica beleza onde nasceu. Permitiu-me também o privilegiado desfrute visual do nascimento, vida e morte dos charutos e, de quebra, escrever mais uma crônica.

Em vindo ä Bahia reserve um turno para nos visitar. Além de ser muito bem vindo, Você verá coisas inesquecíveis. E aprenderá ainda mais, se o puder, a apreciar os puros em todos os momentos de sua vida.

116.    MERCADOR DE PUROS

Nos dias ditos úteis, ao cair da tarde, charuto em punho, encarando o desafio da folha em branco ä minha frente, exercito a mente em busca de associar o cotidiano aqui da província, com os puros e a arte e o prazer de fumá-los.

Assim aos poucos, a par da felicidade de ora expressar meus sentimentos ou de ora retratar minha vivência e a cidade onde (con)vivo, falo com intimidade fraterna dos charutos, cujas cinzas e fumaças aprecio.

Hoje não fugi ä regra. Vindo da fábrica onde recebemos visitantes que se maravilharam com o artesanato charuteiro e aos quais falei um pouco de nossos puros, usos e costumes, na regular hora do por do sol deste quase trópico, postei-me só, a um bar do centro, vendo passar a negra gente da cidade.

São Gonçalo dos Campos, terra dos Alonso Menendez e dos Dona Flor, é uma cidade negra. Como a capa dos charutos Mata Fina. Meu coração e minha mente a ela se acostumaram, como meu corpo e meu espírito, aos charutos também se amoldaram. Escuros ou claros passam eles pela minha vida, com os passantes, muitos negros e poucos brancos, que passam pelas ruas de São Gonçalo.

E como passageiro desta nave citadina, passeio por suas poucas ruas, com se convés fossem, sem ser importunado ao fumar meus charutos. Privilégio cada vez mais raro aos incomuns mortais que os apreciam. E que, com inegável prazer, desfruto.

Acenda um puro. Feche os olhos. Imagine-se viajando para cá e em cá chegando receba, entre as mágicas fumaças de nossos charutos, o fraterno abraço deste escriba-mercador. De puros e de ilusões.

115.    HOMEM COMUM

Os papéis sociais desempenhados e esperados por parte do homem e da mulher, vêm sofrendo mutações a enorme velocidade. Anos atrás roupas multicoloridas eram exclusividades femininas. Mulheres não fumavam, isso era coisa de homens. E que tal, então, elas usarem calças “masculinas”? Chocava. Salões de beleza para homens? Mulheres sozinhas à noite? Homens com orelhas adornadas com pingentes? Beijos ardentes em público? É infindável o rosário de muitas contas de coisas impensáveis, papéis sociais que vêm sendo quebrados. Mesmo assim, muitos tabus persistem, fortemente arraigados, em qualquer cultura.

Certa feita, enquanto à varanda de minha casa, desfrutava um Alonso Menendez Robusto, assistia um documentário sobre dado país africano, no qual homens andam pelas ruas de mãos dadas. Cáspita! exclamei comigo mesmo, baforando o puro. Homens de mãos dadas? questionei-me, inserindo mentalmente tal performance no papel masculino do nosso meio cultural.

Você prezado leitor, já se imaginou, de mãos dadas com um amigo seu, andando pelas ruas de sua cidade? Tirante outras gaiatices, ridículo seria o mínimo que Você ouviria.

Agora, como simples exercício, mantenha o cenário e mude o gesto. Ponha seu braço direito sobre o ombro de seu amigo e continue andando. Ninguém irá perceber nada de invulgar. A cena se insere nos padrões comportamentais latinos. Quer dizer então que abraçados pode, e de mãos dadas não pode?

Com nossos charutos as coisas correm mais ou menos assim. Uma mulher degustando um puro, por incomum, vira notícia, provoca comentários. Um homem comum fumando charutos desperta atenções. Você já percebeu que, de forma quase invariável, todos os artigos sobre o hábito de fumar puros, estão sempre citando os mesmos personagens? Freud, Groucho Marx, Churchill, para falar de outros, Vilalobos, Getúlio, Tom Jobim, para falar dos nossos?

Carácolis! Há coisas para as quais o mundo é cego. Meu cego amor pelos puros, que dado ao estereótipo cultural, espelha grandiosidades que não possuo, me faz recordar um expressivo hai-kai: “Amor cego. – Como um morcego. – Comum”.

Como homem comum, fu(a)mando meu charuto, sem preconceitos, abraço-o e lhe dou as mãos, num até breve!

114.    A (IM)PERFEIÇÃO

Confesso que, no melhor estilo baiano, “retei”. Mesmo sabendo a causa provável do desalinho da queima do meu charuto ficara “retado da vida”. Afinal, o escolhera com carinho, entre muitos. Não fora fruto de uma eleição ao acaso. Abrira minha caixa de Pandora, plena de puros de todas as nuances, bitolas e formatos e, os apalpando para desapertá-los do seu sono, escolhera um que se me parecera o melhor dentre os melhores.

Ledo engano. Após as primeiras baforadas, a queima se revelara irregular. Bom de aroma e sabor, mas ardendo numa só banda. Na outra, a capa como se fosse incombustível, amparava a cinza, formando uma indesejável e pontiaguda lança.

Com meus botões lastimei isso viesse a acontecer, justo quando me preparara para desfrutar um puro em toda a sua plenitude.

Afinal, ainda que não me considere um expert, é inegável que sou um iniciado na arte e no prazer de fumar. E o sendo, exijo que meu charuto, além das satisfações gustativa e olfativa, me conceda também prazeres visuais. Todo o apreciador de puros é um voyeur. E aquele charuto macio, gostoso e perfumado, com sua queima irregular, me negava a plenitude prazerosa.

Vivendo as lides artesanais charuteiras há muitos anos sei serem duas as causas principais de uma queima torta. Uma delas, uma capa mal “curada”, descartei de pronto. Sobrara a segunda: irregularidade no enchimento do filler. Traduzindo em miúdos: a charuteira não compactara bem os fumos da “torcida”. No pé do charuto deixara vácuos, uma  inconsistência que ocasiona, por haver mais ar, uma acelerada combustão unilateral.

De pronto bati a cinza e recortei a parte lanceada da capa que não queimara. “Acertei” a cinza que restara, aspirei profundamente o puro, reassumindo ele a queima “redonda”. A parte mal formada se esvaira. Ficara agora uma consistente estrutura a qual, se transformando em compacta cinza regular, me fizera esquecer o aborrecimento inicial.

Charutos têm dessas coisas. São umas espécies de gentes com a quais convivemos e que, vez ou outra, nos surpreendem. Ora superando nossas expectativas, ora as traindo. Mas que nós perfeccionistas e compreensivo-humano-fumadores entendemos. Afinal, a perfeição não costuma estar em todos os lugares ou em todos os momentos. Compreendemos que aquilo que nasce das mãos do homem poderá ser imperfeito. Como acontece com nossos melhores charutos. De vez em quando.


113.    ÁRVORE DE NATAL

A laica árvore de natal e o religioso presépio, um e/ou o outro, se fazem presentes, em todos os lugares, nesta época do ano.

Tendo um raciocínio cartesiano, sem ser engenheiro, costumo ao se iniciar, em minha casa, a operação de montagem dos mesmos, classificar/separar os enfeites, adornos, bolas e pingentes, por suas cores/tamanhos, de forma a permitir um ordenamento lógico ao utiliza-los.

Agora, tente fazer isso contando com a ajuda das crianças.

Mergulham naquele mundo multicolorido, pegando peças ao acaso e lá vão elas pendurando e dispondo as peças sem maiores critérios.

Foi o que aconteceu comigo neste ano, quando meus dois guris de 3 e 5 anos resolveram “ajudar-me”.

Dado às mãos ocupadas, com meu charuto Robusto preso aos dentes, reclamei, resmungando incompreensíveis palavras. Nada feito. Às bolas coloridas os meninos misturavam lacinhos, contas, penduricalhos vários, lâmpadas que piscam e mais sei lá o que. Acode aqui, acode lá, atende a um, atende ao outro e nem sequer me davam tempo de tirar o puro da boca.

As cinzas despencaram.

Papai Hugo – indagou o mais velho – por que Você não pendura também uns charutos na árvore?

Fiz-lhe a vontade. Corri a meu estoque de rezagos, tomei algumas unidades, adornei-as com um fitilho colorido e lá estão eles na Árvore de Natal deste 2003.

Única! Exclusiva! Diferente!

E a cada charuto pendurado pensava que, se eles existissem ao tempo do nascimento do Salvador, os Magos por certo que, além de esplendor do ouro e do aromático incenso e da doce mirra, também ofertariam a mágica fumaça dos puros.

E a cada charuto pendurado pensava também em todos quantos que, como Você, apreciam o exclusivo mundo dos charutos.

Feliz Natal!

112.    SOU DO PC

Não tenho, e nunca tive, nenhum temor em afirmar alto e bom som, pertencer ao PC há muitos e muitos anos. A lembrança vem a propósito de os muros de minha cidade já estarem, todos, pichados com pré-candidaturas à vereança.

Recolhi algumas preciosidades. Codinomes bizarros, pretensamente populares, Kiko, Dedega, Escurinho, Fal Bulê, Bire, Argolinha, Gordo do Carrapato, Gil da Jauá se superpõem a slogans de campanha nada originais,  como “Juventude e Competência”, “Unidos seremos felizes”, “A comunidade em primeiro lugar”, “Uma nova esperança”, “Meu amigo, meu candidato”, e por aí vai a coisa.

Nenhum candidato assume explicitamente um partido. Mesmo que seja um destes que estão na crista da onda. E, muito menos, ninguém – tenho certeza – pertence ao meu partido.

Acostumado que fui à quase clandestinidade imposta por imposições legais as quais, por incrível que pareça, hoje são mais fortes ainda, apesar das propaladas liberdades democráticas, já não dou mais bola para o que pensam de mim. Sou do PC e continuarei fiel ao mesmo enquanto viva.

Agremiação das minorias, o PC reúne em torno de si intelectuais, artistas,  empresários, profissionais liberais, gente que pensa e que não se  envergonha de tornar pública sua preferência, malgrado olhares enviesados de interlocutores e circunstantes.

Fazer parte dos quadros do PC é privilégio de poucos. Para os que entendem e defendem o direito das liberdades individuais. Para os que assumem uma postura independente das opiniões alheias. Para os que, malgrado o terrorismo oficial, se mantém fiéis aos seus gostos e princípios.

Sou do PC.

Sou do Partido dos Charutos.

111.    SAUDADES

À beira da mesa, um dos meus pontos de apoio prediletos, deixara meu charuto incandescendo. A fumaça formava sinuelos graciosos ao final de um vertical e retilíneo fio. Refletia tons azuis-grafitados até se transformar em nada.

Deixei-me ficar por largo tempo, em silêncio de oração, a apreciar as névoas, algumas até que, em vez de partirem da ponta ígnea, após as baforadas refluíam densas pela outra ponta. E, densas por carregarem a umidade do fumar, se espalhavam preguiçosamente contra o corpo do puro, por sobre a mesa. Rastejando, recusavam-se a subir.

A cor da toalha, um verde acostumado às cartas do baralho, combinava à perfeição, com o castanho-colorado do meu charuto-companheiro.

A crescente parte que se transformava em cinza de um ébano argentino, teimava em se manter unida ao corpo.

O “anel da queima”, negro e perfeitamente circular como devem ser os dos bons tabacos, atestava a excelente performance daquele rolinho de felicidade.

Com as narinas tentava capturar, farejando, o aroma residual da fumaça mágica. E depois o comparava com aquela que eu, em rápido estágio, aprisionara na boca inebriando-a, compelira contra o palato e após, sem pressa alguma, deixara ganhar mundo pelas vias nasais.

O tempo – o que é o tempo? – passara a ser medido por aquela ampulheta de fumo, nascida de carinhosas mãos baianas.

Sabia que outros instantes prazerosos se renovariam.

A partir de então o sabor do puro fora se encorpando. Era chegada a hora dele se desnudar no seu esplendor.

Nada em volta. Apenas a mesa, o tato. A toalha, o gosto. A cinza, o olfato. A fumaça, as cores.

O mundo sumira ao meu redor e assim foi até o final.

Um magnífico Dona Flor Double Corona Claro.

Deixou saudades.

110.    SÁBADO COMPLETO

Por que hoje é sábado, escrevo aos amigos, medito em paz, baforo meu puro.

Por que hoje é sábado, vislumbro o domingo, a paz da família, vou jogar cartas.

Por que hoje é sábado, arrumo papéis, limpo o outlook, viro poeta.

Por que hoje é sábado, as horas não passam, meus puros m’esperam, visto bermudas.

Por que hoje é sábado, limpo gavetas, relaxo e esqueço, falo bobagens.

Por que hoje é sábado, elogio a mulher, festejo os meninos, exageros à mesa.

Por que hoje é sábado, abasteço meu carro, ouço fofocas, conto piadas.

Por que hoje é sábado, corto o cabelo, calço sandálias, vou ao boteco.

Por que hoje é sábado, conto vantagens, regalo charutos, penso em viagens.

E por que hoje é sábado, na sua magia, no meu cantinho, ergo a taça, receba a Fumaça, de quem lhe abraça, com muito carinho.


109.    ÓCIO PRAZEROSO

Nos momentos de ócio familiar, valho-me dos meus charutos. Agora mesmo, num avançar de tarde de feriado, enquanto aguardo os barulhos de pratos e talheres anunciando a comida, e enquanto as crianças, ausentes em passeio à praça, concedem momentos de silêncio, fui visitar uma caixa dos Alonso Menendez Especiales, guardada a sete chaves, há não sei quanto tempo.

Visita invasiva-seletiva.

Com um carinho de primeiras núpcias desnudo a caixa. Com a paciência dos iniciados, rompo o selo. Destravo o fecho. Abro a tampa. Enamoro-me.

Delicadamente apalpo os puros, com a emoção de quem toca algo que nunca o fora.

Com dedos ágeis como os de um pianista, teclo os charutos em busca de sua maciez e, inclinando a caixa em direção à luz, com o olhar passeio sobre as cores daquela esplendida irmandade.

Invadida a privacidade dos puros, fecho a caixa. Fecho os olhos.

Qual escolherei? – me indago. O “melhor” ou o “pior”?

Como assim? – Você há de se perguntar.

Respondo-lhe que é assim mesmo. Os fumadores de puros, em geral sempre elegem o charuto que lhe pareça o melhor dentre todos. E os vão consumindo na escala qualitativa decrescente percebida. De forma tal que os dois ou três últimos charutos da caixa, soem ser qualitativamente distintos dos primeiros escolhidos e fumados.

Ainda com os olhos fechados decido pela eleição inversa. Resolvo degustar o charuto que se me pareceu o mais “duro”. Reabro a caixa em busca do “pior”. Retiro a bolsa protetora de celofane, tornando a apalpá-lo de cabo a rabo. Aspiro seu aroma-mel. Faço da mão balança sentindo-lhe o peso. Anos de empunhar charutos me deixam reconhecer que a “dureza” não decorria de excesso de tabaco. Apenas um grau de umidade, levemente reduzido. Um charuto perfeitamente fumável.

Dou-lhe “candela”. Aspiração e combustão magníficas. Torno a fechar a caixa com seus segredos, na certeza de que os próximos puros, também estarão excepcionais.

Quando os fumarei? Em breve, noutros momentos de ócio prazeroso.

108.    IN MEMORIAM

Com a invejável idade de noventa e cinco anos deixara de fumar seus charutos. Recomendações médicas. Justo ele, médico e catedrático, por anos a fio, da Escola de Medicina da Bahia, fora privado do prazer que o acompanhara por mais de setenta anos. Por vinte, fora eu o medianeiro de seus charutos. Ao telefone, religiosa-mensalmente, falava comigo tratando-me por Hugo Adão. Sempre brincava com meu nome de batismo e, de forma invariável, se declarava – palavras suas – um fã dos meus escritos.

O cliente perfeito, com o passar do tempo, se transformara no amigo mais que perfeito. Não satisfeito em adquirir charutos para seu consumo pessoal, volta e meia, me encomendava uns, “baratinhos” segundo ele, para presentear o capataz de sua fazenda.

Lúcido a mais não poder, me dizia ter abandonado os puros, posto fora “obsequiado com os mimos da senilidade” e me telefonava dizendo das saudades sentidas do companheiro que tivera que deixar, ao longo da jornada. Um dia me surpreendeu. Em vez de telefonar, como sempre o fazia, me mandou um e-mail. Sua voz, já cansada, ficava gravada no seu escrito e até hoje ecoa em meus ouvidos.

Numa noite soteropolitana de junho de 2003, aos 96 anos, dormiu. E dormindo teve o descanso dos justos. Partiu sem dizer adeus. Levou para outras paragens um exemplo de vida longa, profícua e frutífera. E por certo, lá em cima, aspira o aroma das baforadas do charuto que agora fumo, cheio de saudades. A esta altura já deve ser membro honorário da confraria celestial charuteira.

Dr. Alicio Peltier de Queiroz, esteja onde estiver, leia-me e creia-me seu eterno amigo.


107.    CARNAVAL E CHARUTOS

Pronto! Acabaram com meus momentos de sossego na companhia dos meus e dos seus charutos. Em meses de verão na Bahia, não há recanto por mais recôndito que seja, que fuja à regra da carnavalização musical. Esteja Você em Itacaré –pleno mar-, em Nagé, às margens do Rio Paraguaçu, em Itapema, ao fundo da Bahia de Todos os Charutos, esteja em Lençóis, na Chapada Diamantina, esteja Você ainda no Raso da Catarina, em Morro de São Paulo, em Brumado, onde mais seja.

Domingo, fevereiro de sol. Missa e missão cumpridas, farnéis apostos, escolho quatro Pirâmides Dona Flor, reúno as tralhas da meninada, mãos ao volante e lá vamos nós, em busca de um destes paraísos baianos, meus velhos conhecidos.

Sei de antemão que, no destino qualquer seja, encontrarei um carro de som amplificado, inundando com exagerados decibéis a tudo e a todos. E que todos, em improvisadas barracas cervejeiras, parecem felizes. O baiano é um povo musical por excelência.

Em lá chegando, munindo-me de paciência e acendendo meu primeiro charuto da jornada, socorro-me de uma mesa de bar, ao acaso, à sombra de frondosa gameleira.

Desligo os orgânicos fones auriculares, deixando o som carnavalesco como pano de fundo d’outros tempos mais joviais e, charuto em punho, olhos no papel, volto a escrever.

Carnaval e charuto têm, em comum, além da inicial, algo mais que agora tento desvendar. Na paganidade de suas respectivas origens talvez resida o elo perdido. Um, que proveio das festas romanas inundadas de comidas, bebidas, alegrias e seus deuses; outro oriundo da sossegada vida indígena americana, seus rituais, seus pajés e seus tupãs.

E agora, desfrutando o doce aroma de meu charuto – que me remete à introspecção – e o teimoso-agitador-invasor som eletrizado, sob um calor de trópicos, me inspiro e mais aprendo.

O que vale não é o estar. É o ser. E, sendo o que sou, não importa pois onde estou. Mesmo em meio a um suposto sossego perdido, o reencontro dentro de mim.

A mão, com o puro, discretamente se agita ao compasso do estridente som. Os olhos, de quando em vez, se permitem ao luxo de desfrutar o visual ao redor. A cor da tez predominante informa que estou nas bandas do Recôncavo Baiano. Cabelos rastafari, corpos em movimento, mesas inundadas de cervejas, a capoeira, o samba de roda, a baiana do acarajé se misturam a deuses romanos, tupãs americanos, alegria, comidas, cheiros, agitos e – por que não? – a sossegos interiores disfarçados.

No fundo, todos somos um mar de tranqüilidade. Assim o é, tanto no ingresso, quanto na saída, dessa viagem chamada vida. Importa saber entender, neste interstício entre entrada e saída, que viajando na mesma nave-terra, todos têm direitos a tudo. Seja a agitadora paganidade carnavalesca a qual incita prazeres corporais, seja a apaziguadora paganidade dos meus charutos, que remetem a reflexões existenciais.

Que a Alegria do Carnaval e a Paz dos Charutos, estejam sempre com Você.

Ex-corde


106.    EPÍTETOS

O padrão construtivo medieval, que visava a autodefesa dos burgos, casas coladas umas às outras em ruas estreitas, deixou via cultura portuguesa, suas marcas nas velhas cidades brasileiras.

Aqui na provinciadesãogonçalodoscamposdabahia, não se fugiu à regra. Os quarteirões são mares de telhados e às janelas das casas geminadas, habitadas em sua grande maioria por pessoas idosas, homens e mulheres passam a jornada a espreitar a vida alheia.

Esquinas poucas e bares muitos são também pontos de convergência daqueles que, pouco ou nada tendo a fazer, se ocupam em olhar o nada e a todos.

E quando, com meu charuto, imito o hábito do cotidiano citadino, não se passam mais que poucos minutos para alguém, e sempre um amigo mais idoso, me pedir um “daqueles charutinhos especiais que os cubanos fazem”.

Cubanos, no caso, se refere à família Menendez, que para cá imigrou no final dos anos setenta, para dar partida à fábrica de charutos Menendez & Amerino. A qual, com o passar do tempo e das circunstâncias, se transformou na maior fábrica brasileira de puros.

E, ante o irrecusável pedido do interlocutor, prontamente o acorro. Passo a desfrutar, então, de mais um companheiro, além do meu charuto, na enfumaçada rodada do nada fazer.

É confortável e prazeroso fumarem-se puros, em público, aqui em São Gonçalo. Sendo eles parte integrante da cultura local, ninguém reclama. Ninguém contorce o nariz, naquela caretice, literalmente falando, velha conhecida dos amantes da arte e do prazer de fumar.

Ao contrário. Amigavelmente se aproximam, tentando aspirar a névoa das baforadas, evocando avoengas recordações.

E como cidade pequena que é, todos sabendo de tudo o que todos fazem, aos nomes batismais acrescem um epíteto identificador da respectiva atividade de cada um. Assim é que temos um Roque da Farmácia, uma Sônia do Bazar, um Beto do Empório, um Vavá do Capim, um Deraldo do Leite, um Lino da Pousada, e por aí vai.

Eu, acabei me transformando no Hugo dos Charutos.


105.    CHARUTO AO LUAR

Tão bom quanto beber champanha assistindo o pôr do sol – se ainda não o fez, experimente – é desfrutar um charuto à luz da lua cheia. 

A gente fica olhando, olhando aquela bola brilhante, lá em cima, acompanhando a fumaça do charuto que ascende, em busca de São Jorge cavalgando seu dragão fumegante. 

O fumo evolado invade as brancas réstias de luz, formando um etéreo passadiço, sobre o qual caminha o pensamento. 

E, nesse pensar-andar deslizante, recosto-me ao espaldar da cadeira, aprumo o tronco, empino o queixo e com olhar fixo no logo-ali infinito-celeste, baforo, fulminando a lua. 

No silêncio e claridade reinantes, tudo ouço, tudo entendo, tudo vejo. 

Transfiguro-me, com o encanto da magia do charuto-companheiro, vendo a lua derramar-se em prata.


104.    AS PIRÂMIDES

Ao se falar em pirâmides não há quem, de pronto, não visualize a forma que conceitua o termo. Da base quadrada nascem triângulos inclinados, os quais ao se encontrarem no topo, acabam num ponto.

Os charutos piramidais Dona Flor se inspiraram nas seculares pirâmides e em muito a elas se assemelham. Quadrados no formato, com quinas arredondadas para permitir um suave rodilhar nos dedos, as laterais, no bico, se estreitam. Mas não se encontram. Uma tecnicamente correta abertura na ponta, dispensa o uso da guilhotina. As pirâmides D. Flor chegam até você de portas abertas para que possa desvendar seus mistérios e segredos. Os quais, a exemplo dos ícones egípcios, não são poucos.

Permita-se ao luxo de fazer uma viagem sem sair de sua casa.

Ao acender uma pirâmide Dona Flor, a queima regular, a combustão perfeita, a consistente cinza, associados ao excepcional sabor e característico aroma lhe transportarão, se sossego tiver, aos lugares onde moram seus melhores pensamentos.

Sensações indizíveis dos previsíveis prazeres de pisarmos no recôndito do nosso ser, lhe aguardam. Um misto do céu dos salmistas com o limbo de assexuados seres e - por que não? – do lugar onde, segundo dizem, no futuro encontraremos nossos melhores amigos.

Enquanto sua pirâmide arder, viverão em Você, na sua paz, os ardentes e pacíficos desejos do querer-mais. Do não querer que, tendo o ponteiro maior girado uma volta completa, seja chegada a hora de voltar à realidade.

Como acaba de acontecer comigo, agora, ao ver minha pirâmide Dona Flor, inspiradora desta crônica, anunciar o tempo de, saindo donde estava, voltar para onde estou. E de estar, mais uma vez, consigo.

Até a próxima viagem.

103.    AMAR E FUMAR

Sem querer sucumbir às tentações explicadas pela psicanálise, resolvi escrever associando os puros ao peito feminino.  

À criança desmamada dá-se a chupeta (ou bico, por analogia à mama) e a mamadeira. Intui-se, assim, superar a fase alimentar oral da sucção. 

A meus dois guris pequenos neguei o bico, impedi o dedo na boca, mas para alegria minha e aporrinhação dela, minha mulher estendeu o peito, a cada um, por dois anos, associado às mamadeiras. Mas já vi casos de recém nascidos de mães sem leite, serem nutridos em copinhos. Conclui que, aparentemente ao menos, seja o processo alimentar, seja o processo prazeroso da sucção, pode ser contornado na fase infantil. 

Depois... Bem, depois vem o Liebfraumilch. O Amigo já se deteve para notar a sutil apelação vinícola? Qual seria a melhor forma de se desfrutar o leite da mulher amada? Pois é, depois vem o peito da mulher amada. 

Qual o homem, nesse mundo de meu Deus, que com tal não se tenha deliciado?

Volta à infância? Prazeres orais esquecidos ou subtraídos?  

Será coincidência o mero ato de fumar com o de mamar? 

Coincidência ou não, mamo o bico de meus charutos. Evoco, graças a eles, os biologicamente esquecidos prazeres dos peitos maternos e os nunca esquecidos prazeres dos peitos amantes. 

E como evocações não são lembranças, curto um prazer etéreo e intraduzível que me faz recordar belo grafiti com o qual, certo dia distante, me deparei numa rua paulistana: 

Amar é ter na mente.

Amar, éter na mente.  

Amar eternamente.

 

Ao fumar seus puros, troque Amar por Fumar. Assim entenderá melhor minha crônica de hoje.

102.    NOVA MUSA

Ela surgiu, como se viesse do nada, numa noite de setembro. Pequena e diáfana, se mantinha quase oculta por um manto e um mundo de adornos. 

Disputadíssima, todos queriam te-la consigo. 

Não tinha os românticos desencantos de uma Julieta sem Romeu. Mais se parecia com a tropical e amadiana beleza de uma Dona Flor sem maridos.

Seu semblante tinha um quê de mistérios zodiacais. 

A cabeça, levemente inclinada, acenava sutis concordâncias a previsíveis pensamentos. Centro das atenções, seu brilho ofuscaria toda uma constelação, se lá houvesse.

Imperturbável e majestosa, aguardava pacientemente, onde se postara, o cumprimento de todos. Sabia ser desejada como objeto de prazer.

Seu olhar falava prenunciando sensações premiadas por sabores ainda incógnitos.

Sua marcante presença e inconfundível aroma, inebriaram o ambiente. Um tempo novo anunciavam.

Em aplomb superava qualquer napoleônica Josefina e em garra, causaria invejas a uma Quitéria, Maria baiana de causas libertárias.

Seu anel emoldurado, lembrando um camafeu, andou por todas as mãos e se aproximou de todas as bocas.

Lirismo de musas parnasianas.

Minha nova musa.

Meu novo charuto.

Aquarius.  

 

 


101.    PRIVILEGIADOS

A mudança do hábito protocolar postal para o eletrônico, exige do internauta adaptar-se a outros comportamentos. As cartas tradicionais chegam, de forma automática, às nossas mãos. Alcançadas por alguém do escritório ou da casa, apenas exigem o esforço de abrir os envelopes. Com a Internet a coisa muda. 

Ter-se um endereço eletrônico sem acessá-lo sempre, é o mesmo que se ter uma caixa postal e nunca passar na agência dos Correios, para abri-la. E aí, aquilo que seria veloz se torna quase obsoleto. Voltamos ao tempo das carruagens. 

Minha experiência tem revelado que muitos de meus amigos, destinatários das crônicas deste escriba, vive tal drama. Passaram a ter um endereço eletrônico, mas quem o acessa, se for em casa é, em geral, um filho adolescente. Se for no escritório, é a secretária. Aí, estes, passam a ser os primeiros a tomar conhecimento do assunto. No caso dos jovens, julgando o assunto “careta”, alguns, o deletam. E, no caso das secretárias, algumas que, em silêncio, “odeiam” a fumaça dos charutos, pois lhes contamina os cabelos, fazem a triagem e não encaminham o material para “não aporrinhar o chefe”. 

Resultado: rompe-se o elo da comunicação epistolar; prejudica-se o relacionamento emissor-receptor. 

Outro dia vivi o caso de um de meus destinatários eletrônicos, cobrar-me a falta de notícias.

“Mas Fulano, eu tenho enviado minhas crônicas para seu e-mail”. 

“Meu e-mail? indagou surpreso, em seguida retificando:” Ah! Meu e-mail, quem acessa é a minha filha”. 

Sem comentários. 

Quem não incorporou ao seu cotidiano o hábito de abrir sua caixa eletrônica (ou o de indagar a quem o faz), será melhor que opte por receber suas mensagens pela via postal. 

Com os charutos as coisas, também, se passam mais ou menos assim. 

Fumá-los exige comportamento distinto dos comuns mortais. Saber enfrentar a maré de reclamações dos circunstantes, “sem perder a chave”, quando as primeiras baforadas espalham o aroma do tabaco, requer igual perseverança àquela do acessar sempre as mensagens do computador. 

Saber “dar a volta por cima”, calado, entendendo tratar-se tal hostilidade, apenas uma lacuna cultural, requer compreensiva paciência. Assim como são poucos os que têm condições de gosto para admirar grandes vinhos, poucos são os que chegam a aceitar os charutos. 

Por isso Você e eu somos privilegiados. Sempre acessamos nosso computador e fumamos nossos puros, num saber-viver que nos distingue dos comuns mortais. A modernidade e a tradição convivendo pacificamente.

 

Hugo Carvalho

E-mail: hugocharutos@uol.com.br

Telefones: (075) 9133 1209 ou 246 1744

Caixa Postal, 02

44330-000 São Gonçalo dos Campos - BA

 

 

 

 

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