FUMAÇA MÁGICA

HUGO CARVALHO*

 

Arte e Prazer para os bons momentos da sua vida

 

155 ADEUS, LINO! 15/02/05
154 ME DÁ CÁ TEU NETO 10/02/05
153 BISAVÔ 03/02/05
152 BOM TOM 26/01/05
151 A EXIGÊNCIA DOS CHARUTOS 18/01/05
150 RELÓGIOS 11/01/05
149 CONTAGEM REGRESSIVA 29/12/04
148 NOVAS PAREDES 22/12/04
147 ODE AO CONSUMIDOR 17/12/04
146 VINGANÇA 09/12/04
145 CARROCEIRO DE CHARUTOS 26/11/04
144 DUROS E MOLES 12/11/04
143 CONVERSA FIADA 05/11/04
142 LUGARES COMUNS 28/10/04
141 DUALIDADE 15/10/04
140 APOSENTADO 08/10/04
139

DEIXA A VIDA ME LEVAR

01/10/04
138 INFERNO ASTRAL 17/09/04
137 ESPELHO MÁGICO 09/09/04
136 CHARUTO DESFOLHADO 30/08/04
135 EXPLODE CORAÇÃO! 19/08/04
134 ALIANÇA 09/08/04
133 NOVA ERA 30/07/04
132 PRESSENTIMENTO 20/07/04
131 RESTAURANTE DE BERÉ 09/07/04
130 ORIGEM CERTIFICADA 28/06/04
129 RECEITUÁRIO 15/06/04
128 PUROS E DIFERENTES 02/06/04
127 O PURO E A PENA 24/05/04
126 UNIDOS PARA SEMPRE 11/05/04
125 GUERREIRO DOS CHARUTOS 03/05/04

FUMAÇA MÁGICA - CRÔNICAS 125 ATÉ 150

 

FUMAÇA MÁGICA - CRÔNICAS 101 ATÉ 125

 
 

FUMAÇA MÁGICA - CRÔNICAS 051 ATÉ 100

 
 

FUMAÇA MÁGICA - CRÔNICAS 001 ATÉ 050

 

 


155.    ADEUS, LINO!

Depois que meu grande amigo, o galego bom de prosa Lino Bouzas, aos 69 anos, veio a morrer no Dia de Reis deste 2005, a parte passatempo de minha vida não foi mais a mesma. De Lino eu já falara em crônicas anteriores. Era o proprietário da Pousada do Centenário, antológico refúgio são-gonçalense no qual, por muito tempo, nos reuníamos para jogar baralho e conversa fora.

A morte de Lino não foi surpresa para tantos quantos – e poucos – que desfrutavam sua cotidiana companhia. Era anunciada há algum tempo. Deixou-se ele, gradativamente, imergir no alcoolismo, alimentando-se mal, abandonando os charutos, desatencioso com os clientes e consumindo dezenas de cigarros diários.

Conselheiro para todos, era um péssimo conselheiro para si mesmo. Vítima de longas e costumeiras crises depressivas automedicava-se. Rebelde a mais não poder, não aceitava ponderações dos amigos. Revidava com palavrões impublicáveis. No fundo, no fundo, um suicida em potencial, revelava por suas predileções, o desejo de abandonar a vida. Antes que a mesma o abandonasse. E assim o foi, deixando-me órfão de uma amizade de quatro décadas. Amizade que datava de muitos anos antes dele e eu, coincidentemente, havermos escolhido São Gonçalo dos Campos para viver (?).

Morando sozinho, por força de enlaces mal resolvidos, tinha a Pousada do Centenário, como a sua casa. A ponto de vezes muitas afirmar que “não gostava de casa cheia”. Deixava-se ficar, horas a fio, sempre na mesma mesa da varanda daquela casa, incontáveis doses de uísque, pontuando triplicimente suas palavras,  com o dedo médio da mão direita. Hoje, ao olhar tal mesa, recordo os versos Sérgio Bittencourt homenageando seu pai, Jacó do Bandolim: naquela mesa está faltando ele e a saudade dele está doendo em mim.

Seu corpo cremado desfez-se em cinzas alvas, como as cinzas do charuto que agora fumo, espalhadas na área verde da Pousada. Lugar que tanto amara em vida. Eu e seus fraternos amigos,  não mais tivemos prazer algum em lá estar para nos reunirmos e jogar cartas. Como zumbis vagamos pelos bares de São Gonçalo, em busca de outro lugar que seja tão acolhedor, mas que não nos traga tantas saudades.

Adeus, Lino!


154.    ME DÁ CÁ TEU NETO

Depois que meu filho caçula de apenas 4 anos, virou tio-avô, vi mais uma vez que a vida é pródiga em emoções. Elas se fazem presentes no nosso dia a dia e o importante é saber reconhece-las e desfruta-las. Curti-las com a paixão dos amantes; com a devoção dos religiosos; com a sensatez dos equilibrados; com a arte e o prazer dos que aprenderam a fumar charutos.

Paixão, devoção, sensatez, arte e prazer que quantificados em doses certas, combinados com tudo quanto nos envolva, nos pertença ou não, inundam de alegria nossos corações, nos fazendo seres felizes e realizados.

Agora mesmo, ainda sob o impacto da notícia que me transformou em bisavô, sozinho, fumando meu charuto e, furtivamente bebendo meu uísque proibido, – as transgressões são humanas – giro o caleidoscópio da vida e deixo cores e luzes me fazerem ver como o viver é prazeroso.

No Bar Kaskata (outro dos refúgios etílicos de minha cidade), ouvindo um samba de roda cadenciado e admirando a prateada cinza do meu Robusto Mata Fina, me deixo ficar num solitário e indescritível enlevo.

É mais um sábado, dia de feira, desta “minha” São Gonçalo dos Campos. Peço outro uísque. Enamoro-me do meu charuto-companheiro. O burburinho de vozes circunstantes que se entrelaçam, tornando-as incompreensíveis, com a música, formam o pano de fundo deste momento, transformando-o.

Não mais simplesmente estou. Sou. E o sendo, vendo dissipar-se a azulada fumaça do meu puro e me inebriando com a doçura do mel-tabaco, aguardo esperançosamente um outro dia, lá no futuro, quando eu puder dizer, como o fez minha avó para comigo: “Meu neto, me dá cá teu neto”.


153.    BISAVÔ

 

Ainda está viva a emoção do momento. Foi num final de tarde deste último janeiro-verão, seco e inclemente. Eu e alguns amigos, como sempre o fazemos, esperávamos a infalível brisa vespertina que caracteriza as noites de São Gonçalo dos Campos. Sobre a mesa, instalada em nosso “calçadão” central, pródigo em bares, água de coco, cerveja e uísque traduziam a diversidade de gostos.  Eu desfrutava o final do meu charuto das ave-marias.

 

Enquanto baforava e apenas ouvia os interlocutores, fui ao carro buscar outro charuto e dei uma olhadinha no celular que lá ficara, constatando uma chamada não atendida. Isso comigo, é mais ou menos normal. Não tendo me deixado apaixonar por tal comodidade, a esqueço nos mais diversos lugares e ao reencontra-la, lá estão os contatos não atendidos. Aliás, vivendo no interior, o meu celular só serve mesmo para receber telefonemas. Pouco o uso.  Afinal, pensem bem, se aqui na minha cidade se anda de sandálias, de bermudas,  sem lenço e sem documentos,  - até sem dinheiro - para que carregar um celular? Ele, aqui, é coisa para a rapaziada e as meninas, estas que adoram tê-los enfiados nos bolsos traseiros de seus apertados jeans, apertando-os mais ainda. Gostoso de ver. Difícil de entender.

 

Ao olhar o número que me chamara vi ser da área código 31. 31? Indaguei-me. Isso deve ser um dos meus clientes mineiros querendo encomendar charutos. Logo mais, ao chegar em casa, ligarei para ele. E com o novo charuto e o celular na mão, retornei à mesa e à conversa entre amigos.

 

Não se passaram dois minutos e tilinta nova chamada. O mesmo número. Prontamente atendo. Alô vô! Aqui é sua neta Cristiane, estou ligando para lhe dar uma notícia.

 

O coração bate forte. Afinal, embora de forma regular fale, por telefone, com oito dos meus dez filhos que não moram em São Gonçalo, falar com os netos é coisa bem mais rara. E a recíproca, mais ainda. A gente, nessa hora, sempre pensa no pior.

 

Vô! Estou ligando para lhe avisar que o senhor vai ser bisavô! Estou esperando o senhor vir a Belo Horizonte em setembro, quando o nenê vai nascer!

 

Despenquei! Emudeci! Lembrei-me, quando com 37 anos, recebera parecida notícia, também telefônica, informando-me que iria ser avô.

 

O resto não é preciso contar. Finda a ligação, acendi um dos melhores charutos da minha vida e, na companhia dele e dos amigos que lá estavam, ficamos em comemoração até noite avançada.

 

Abraços do amigo e bisavô, sim senhor.


152.    BOM TOM

 

São somente três versos. O primeiro expressando algo permanente; o segundo introduzindo uma novidade e o último, formulando a síntese. Trocadilhando palavras poucas nasce o hai-kai,  poema originário do Japão, conciso, anti-retórico, rápido e rasteiro no qual, ao imergirmos, lendo-o e relendo-o, damos asas à imaginação. Viajamos.

 

Veja este, cujo autor desconheço:

 

Amor cego

Como um morcego

Comum.

 

Na sua eloqüente simplicidade sintetiza e retrata os desatinos da cegueira de certos amores.

 

Ai dos que, na vida, não tenham (man)tido, ao menos, um amor cego. Daqueles que não respeitam barreiras, não ouvem conselhos, enfrentam desafios. Cegamente navegam. Como um morcego comum.

 

E, ao falar de amores, não me refiro só às relações interpessoais. Uns amam o jogo; outros, o trabalho; outros mais a bebida ou a música; outros ainda, como eu, os charutos.

 

Charutos que, evocando o inesquecível Tom Jobim, compositor e emérito fumador de puros, remetem ao início desta crônica, me inspirando este hai-kai:

 

Na boca de Tom

Não era batom.

Era bom tom.


151.    A EXIGÊNCIA DOS CHARUTOS

Estou num sábado. E por que hoje é sábado, meu expediente de aposentado se resume ao ócio criativo, onde o tempo é marcado pelos puros degustados e se esvai nas fumaças nossas de cada dia.

Na pacata vida da cidade-berço de maior fábrica brasileira de charutos no presente, os sábados são o oposto dos dias outros, ditos úteis, do produzir arte e prazer. Nesses a faina fabril, com cadenciado esmero, apalpa os fumos os transformando nos rolinhos objeto de desejo. Aos sábados, na fábrica, tudo cessa. As mulheres-operárias, sem suas fardas, saem cedo às ruas, juntando-se à multicolorida multidão feminina que vai à feira, transformando parte do labor que Você consome ao fumar nossos charutos, em sustento para suas famílias.

Aos sábados a cidade se agita. As poucas e não grandes, casas comerciais sorriem. Mercadores de carnes, de vegetais, de frutas, de farinha, por todos os cantos, rodeados de mulheres que a eles se avizinham, espreitando, apalpando, pechinchando. De lá, cumprida a missão, voltam às suas casas.

Enquanto isso, nos bares, os homens da cidade, indolentemente se deixam ficar, contando incontáveis lorotas regadas por democráticas cervejas.

Aos sábados assim é na nossa pequena São Gonçalo dos Campos. Homens no bar; mulheres no lar. E eu, não escapando à regra socialmente aceita, fujo com meu charuto para o recanto onde reencontro meus velhos companheiros de carteado.

Como agora, quando com meu charuto Dona Flor Robusto aceso, escrevendo enquanto a turma joga, curto o ócio de mais um sábado citadino.

Os charutos são assim mesmo. Nada mais exigem de Você que não seja um aplicado tempo para lhes fazer companhia.


150.    RELÓGIOS

Não vou retroceder ao tempo da ampulheta. Limito-me a relembrar o tempo em que os relógios eram mecânicos, de corda como se chamavam, se constituíam num objeto de luxo, quase inalcançável, pela maioria. Essa via o tempo passar pelo andar do sol ou o ouvia nas monótonas badaladas dos sinos das igrejas. Em tal época os relógios de carrilhões, ou os relógios-cuco, se postavam com destaque em cantos e paredes de salas dos mais abastados. Eram autênticos objetos de decoração, símbolos de status.

Houve até o tempo da Rádio Relógio Federal, a qual anunciava o tempo de minuto a minuto, para os que não podiam ter um relógio em suas casas, ou os que os tivessem, necessitassem acertar as horas.

Depois, o medir do tempo democratizou-se. Digitalizando-se o vê-lo passar no pulso, vulgarizou-se. Os cucos morreram. Os carrilhões enferrujaram. Os relojoeiros sumiram.

Adeus relógios que se usavam no bolso pequeno frontal das calças, chamados de “patacas”, corruptela abrasileirada da marca Pateck Philip. Relógios que presos por uma correntinha, ao fundo se abriam, tendo gravadas na contratampa, homenagens, datas, mil coisas mais. Eram verdadeiros repositórios de emoções.

As horas são anunciadas, agora, em tudo o quanto que nos cerca. Nos enormes relógios digitais ao longo das avenidas, nos telefones celulares, nos painéis dos automóveis, nos pulsos das crianças, nas paredes de todos os aposentos, nos transmissores de rádio, nos computadores, nas emissoras de rádio que as anunciam o tempo todo e por aí afora.

Olhar-se o sol cruzando o zênite, para se imaginar a hora, nem pensar. O tempo, agora, está por todos controlado. Malgrado tudo isto mantenho meus relógios próprios. Meus charutos, por exemplo, medem com precisão o tempo de minhas jornadas. Do amanhecer à hora do descanso do guerreiro, com suas cinzas, me dizem a quantas horas ando. Poderia até acertar meu relógio por elas.

E como é gratificante ver o tempo passar, ocupado ou não, como agora, medindo o tempo pelo esgotar-se do meu charuto.

Por isso, olhe para o seu relógio. Se Você não tiver tempo para bem consumir seu charuto, não o faça. Deixe o tempo passar e, depois, com tempo, mergulhe de corpo e alma na fumaça mágica do seu puro predileto.


149.    CONTAGEM REGRESSIVA

Meu coração, de quando em vez, é dado a descompassos rítmicos. Ora dispara sem aparentes motivos lógicos, fazendo meu peito sentir-se pequeno; ora ressoa como a corda de um despertador em final do avisar as horas. E, para tais sustos desconhece os dias da semana mas prefere sempre os finais de tardes ou a calada da noite.

Mal congênito há muito conhecido, com suas seqüelas tenho aprendido a conviver desde quando os sessenta anos me chegaram. Até então permanecera quieto, num estado, penso eu, letárgico-germinativo.

Nos tempos juvenis foi impedimento a atividades desportivas, mesmo sem ser radicais, ou a profissões algumas do tipo pilotar aviões. No presente, qual vulcão que se tornou ativo, volta e meia derrama lavas de preocupações, o mais das vezes apagadas na sala de emergência de uma unidade hospitalar.

Os procedimentos de então já os conheço, a ponto de orientar os plantonistas. As recomendações médicas sei de cor. Tirar o pé do acelerador. Deixar de fumar meus charutos é, de forma unânime, a primeira que sempre ouço. Deixar de beber, seja lá o que for, a segunda. E por aí vai a coisa.

Passado o episódio, o qual por uns dois dias me alija do dia a dia ao qual me acostumei, retorno à “ativa”. Em geral num compasso, mais “moderado” até que surjam as sombras do esquecimento. Sombras que dissipam indagações existenciais mas que, no fundo, no fundo, compõem a contagem regressiva do viver dias bem vividos. E, por falar em contagem regressiva, olhando o calendário, dou-me conta estarmos nos últimos dias de dezembro.

Portanto, mais um ano que se passa. Oportunidade que justifica desfrutar a paz dos meus charutos, paz que desejo seja extensiva a toda a humanidade.

Feliz Ano Novo!


148.    NOVAS PAREDES

Suspendendo-me pelos braços me punha, em pé, sobre a mesa, fazendo nivelar nossos olhares. E eu via, então, duas cintilantes bolas de cristal de um verde-mar que não deixou herdeiros, fitando-me como se quisesse adivinhar o futuro.

O olhar de minha avó paterna era assim. Tão verde-penetrantes que, passados quase sessenta anos daquela cena, ainda os sinto como se hoje fosse. Abraçava-me, então, carinhosamente fazendo-me sentir a maciez dos seus cabelos duma prateada alvura. Alvura essa que, ao me mirar no espelho, vejo  tentar imitar.

E neste rememorar do passado, mirando as cinzas do meu puro-companheiro, concluo terem sido elas que me fizeram viajar nesta dimensão do tempo. Tornaram presentes momentos da primeira infância os quais, há muitos e muitos anos, estavam soterrados pelo desabar dessa coisa chamada vida.

As vidas, como os charutos, não se repetem. Cada vida é uma vida. Cada Natal é um Natal. Cada charuto é um charuto. São tão específicos, tão individuais, com suas próprias histórias, que nos impedem a ousadia de tecermos comparações.

O máximo a que nos podemos permitir, como acontece agora comigo, pontuando um momento pretérito e falando dos charutos presentes, é que ao desfruta-los estou erguendo novas paredes dessa casa-labirinto chamada saudades.

Feliz Natal!


147.    ODE AO CONSUMIDOR

É muito prazeroso estar consigo novamente. Como sei que Você é um dos habituais leitores de minhas enfumaçadas crônicas, estar consigo é estar em casa. É estar comigo mesmo.

E em tal auto bem estar, acendo meu Robusto, esperando que sua fumaça chegue até Você, mensageira e portadora da minha paz interior. Permita-me, pois, dar tratos à bola e, hoje, render-lhe especial homenagem.

Todos os processos produtivos, o dos charutos e o da escrita não fogem à regra, têm, lá no final da cadeia, um único alvo: o consumidor. É essa excelência nossa exclusiva razão de produzir.

Você que me distingue com sua preferência aos meus charutos e/ou aos meus escritos, vem a ser, portanto, a razão soberba do meu trabalho. É Você quem me assegura o pão nosso de cada dia. E sempre que retorno à minha casa, carrego um pouco de Você comigo.

E quando, porventura, me esqueço de Você, passeio pelo meu cadastro e sinto, com imensas saudades, que tanto tempo se passou sem ter notícias suas.

Imagino então que, como minhas crônicas não retornam, que Você deve estar bem e no endereço de sempre. Fico alegre. E quanto à razão do meu negócio que é servi-lo? Fico triste.

Mas como o mundo é dicotômico – melhor seria dizer autonômico – alegria e tristeza se compensam, induzindo-me ao auto bem estar inicialmente aludido. Nem céu, nem inferno: um simples limbo no qual fé é substituída por certeza. A certeza de sabe-lo bem. A certeza de saber que quando Você necessitar charutos se lembrará de mim. A certeza de quando alguém falar de charutos consigo, serei lembrado. A certeza final, enquanto eu viver, de que estaremos sempre ligados pelo indissolúvel laço charuteiro.

Por isso, a Você, consumidor de minhas crônicas e de meus charutos, minha homenagem.

Obrigado, do fundo do coração, por tudo de bom que Você me tem proporcionado.


146.    VINGANÇA

 

Na manhã de um dos muitos sábados do nada fazer, cheguei tarde ao habitual encontro das sabatinas. Melhor dizendo, das jogatinas. A mesa do “buraco” já estava composta e, detalhe, dos quatro jogadores, dois estavam fumando charutos. Um, com um Dona Flor Robusto Mata Fina e o outro, com um Alonso Menendez 10 Claro. Por estas bandas nada há de charutos cubanos, dominicanos e outros menos votados. Fuma-se aqui o que aqui se produz.

 

Os dois charuteiros incensavam a sala do jogo com suas baforadas. Outro dos dois demais jogadores, afeito aos cigarros, “poluía” o ambiente. Já o quarto integrante da rodada, ex-fumante convicto, e como soe acontecer com todo o ex-fumante, praguejava, reclamando do fumacê. E, enquanto eu aguardava o final da partida, resolvi aumentar os agravos deste último, acendendo meu predileto Alonso Menendez Robusto.

 

Mais de trezentos e quarenta anos de vida estavam ali na sala. A fumaceira dos charutos não me impediu a contagem. Éramos dois sexa e três setuagenários. E, exceção feito ao ex-fumante, convalescendo-se de recente cirurgia na próstata, todos gozando a mais perfeita saúde. E tome-lhe fumaça no ar.

 

O fumador de cigarros se assemelhava a um dragão, pondo apressadas fumaças pelas narinas. Um fumar nervoso, talvez porque estivesse perdendo,  que contrastava com as tranqüilas fumadas dos velhos e iniciados charuteiros. O “dragão” instado a trocar o cigarro por um charuto, gentilmente oferecido por um dos presentes, resolveu faze-lo. Sendo inexperiente foi auxiliado e orientado. De nada valeram nossas admoestações. Depois de enorme trabalheira para acender o puro, depois de quase desistir do intento, foi com muita sede ao pote e resolveu tragar a fumaça. E o fez sem cerimônia alguma. Os olhos se lhe inundaram de lágrimas.  Engasgou-se e tossiu a mais não poder. Xingou-nos.

 

E nós, plácidos e serenos no desfrute dos nossos charutos, com boas risadas nos sentimos vingados do cigarro que ele introduzira no nosso ambiente.


 

145.    CARROCEIRO DE CHARUTOS

 

Elas não são mais como as da época em que tinham enormes rodas de madeira revestidas com aros de ferro que, rodando por sobre os paralelepípedos, avisavam a enorme distância, sua chegada. Agora chegam de mansinho. Silenciosamente e num vagar dos tempos sem pressa. As enormes rodas de antanho foram substituídas por jantes velhas de automóveis, completadas com pneus mais velhos ainda. São as carroças de São Gonçalo dos Campos da Bahia que por aqui, ainda circulam, servindo a tudo e a todos.

 

Puxadas, na sua maior parte por burros, integram o visual da cidade despertando a atenção dos visitantes provenientes dos grandes centros.

 

Para nós, que cá vivemos, passam desapercebidas. Pelo menos, para mim, assim o era até quando, sentado à porta de um bar citadino, fumando meu Robusto, dei-me conta da beleza plástica, com sabor de passado, das nossas carroças.

 

Verdadeiros meio de transporte de utilidade pública, por cinco reais, levam gente para a feira; doentes para o hospital; transportam sacos de cimento, bloco, areia, brita, madeiras; fazem mudanças; entregam gás de cozinha e tudo o mais quanto você possa imaginar. Carroceiro é profissão ativa aqui em São Gonçalo. Autônomos, contribuem para a previdência social e, com os ganhos do seu trabalho, sustentam suas famílias.

 

Gente simples, do povo, a pele acostumada a estar sempre sob o sol de nossos ensolarados dias. Quando sem serviço, estacionam suas carroças na praça central, dita do Comércio, às portas de uma das casas de materiais de construção. E pacientes, tanto quanto eu agora desfruto meu charuto, vêem o tempo passar a espera, eles, de algo a transportar.

 

Carroceiro dos puros da Bahia, chego mais uma vez até você, sem pressa, falando-lhe das carroças nossas de cada dia e dos charutos que, todos os dias, freqüentam nossas vidas.


144.    DUROS E MOLES

A produção de charutos tem seus inimigos mortais. Não falo dos antitabagistas, dos altos impostos, das restrições ao hábito de fumar. Hoje me refiro a outro deles: a umidade relativa do ar.

Sendo o tabaco um produto muito higroscópico, absorve com extrema facilidade a umidade ambiental. Se estiver muito alta, como resultado, a elasticidade e a compressibilidade das folhas aumentam. Se a charuteira não tiver um treinamento perfeito, involuntariamente, aumentará a massa de fumos do corpo do charuto, ou estirará a capa em demasia.

Tal ocorrendo, quando o puro secar, não haverá cristão que o consiga aspirar.

O controle de qualidade é feito, em geral, por amostragem dos pesos. Mas, por mais perfeito que seja, vez ou outra, você poderá se deparar com um charuto “entupido”. Abro um parêntese apenas para registrar que tal defeito não decorre exclusivamente do fato relatado.

Não insista em fuma-lo, nem se aborreça. Simplesmente comunique o fato a seu fornecedor. A maioria dos fabricantes nacionais costuma repor a seus lojistas, sem ônus, produtos defeituosos. Se for um produto importado, aí a troca é bem mais difícil.

Por outro lado, quando a umidade relativa está muito baixa, as dificuldades no fabrico não são tão grandes, pois é bem mais fácil umedecerem-se as folhas do que lhes tirar a água. Mesmo assim, no setor de manuseio dos fumos retirados dos fardos, os cuidados devem ser redobrados.vez que as folhas se rompem com extrema facilidade. E se tal fumo for “capeiro” então, adeus Irene.

E já que hoje resolvi falar de umidade,  não custa nada recordar a questão dos charutos “duros” e “moles”.

Há fumadores que dedilham os puros e os encontrando “duros”, os descartam antes de acende-los. Vá com cuidado. Um charuto “duro” nem sempre significa um charuto mais pesado. O que dificulta, e até impede, a aspiração é o charuto estar com o seu peso acima do normal. Estar simplesmente “duro” pode significar que, apenas, esteja “seco” o que não lhe retira a capacidade de ser degustado.

Não tenha medo de charutos “duros” em geral. Tema mais os charutos “moles” pois esses, estão com seus pesos abaixo do standard ou excessivamente úmidos. Na primeira hipótese são “fumáveis” embora muito do buquê se perca pelo excesso de injeção de ar, quando da aspiração. Já no segundo caso, pelo amor de Deus, vai ser um acende-apaga infernal e o sabor será terrível. Não perca tempo com eles. Deixe-os secarem num ambiente com ar condicionado, que recuperarão muito de suas qualidades.

143.    CONVERSA FIADA

Ouve-se amiúde que, qualitativamente, nada mais é como antigamente. Ledo engano. As coisas, agora, não são nem melhores, nem piores. Apenas, diferentes. Entender as diferenças faz parte do nosso aprendizado. Mas o fato de entende-las não significa que, forçosamente, tenhamos que aceita-las ou praticá-las.

O entendimento é a aceitação da nova realidade social, reservando-nos o direito de assumi-la ou não. É claro que não podemos radicalizar a ponto de, com atitudes excludentes, rejeitarmos as inovações. O mistério das individualidades que, somadas, formam o senso comum, revela a direção dos ventos.

Se quisermos ser entendidos, pelo meio social, com nossos hábitos “tradicionais” como fumar charutos, temos que contrabalança-los, aceitando regras pessoais ou profissionais “modernas”. Regras que não firam o ego. Esse é formado por “princípios” que independem da roupa que a gente veste, da comida que a gente come ou do charuto que a gente fuma.

Se, com vistas despidas de preconceitos, verificarmos o que está por detrás das aparências do mundo aparentemente mudado, concluiremos que nada mudou. Somos nós que, invernos vividos, criamos nossas zonas de conforto, internalizando coisas que gostaríamos de ver eternizadas. Por que assim o sendo, o tempo não passaria para nós.

Isso bem entendido nos faz conformados com os reflexos do espelho dos anos. Perfeitos nas nossas imperfeições. Aceitos com nossos hábitos. E fazendo nossos charutos, os quais não mudaram com o tempo passado, invadir o futuro-presente, e serem reconhecidos como um diferenciado gosto do bem viver.

O resto é conversa fiada!


142.    LUGARES COMUNS

 

Eu e muitos companheiros que, há anos, labutamos no mundo do fabrico de charutos e de seu consumo, nos arvorando em “defensores da moral e dos bons costumes”, volta e meia, criticamos hábitos heterodoxos de determinados fumadores de puros.

 

É claro haver uma linha condutora na arte e no prazer de fumar mas, como o disse, o fato de ser arte, permite derivações e abstrações, nem sempre apreendidas pelos que se classificam de críticos.

 

A ortodoxia do aprendizado do universo charuteiro, à qual me submeti (ou me submeteram?) me transformou, por muito tempo, num “chato de galochas”, tentando convencer “mundos e fundos” ser tal ou qual, a melhor maneira de se desfrutar um puro.

 

Lembro-me bem. Nos idos de 1978 elaborei um vade-mecum, então fartamente distribuído pela Menendez  & Amerino, onde entre outras “preciosidades”, condenava, inquisitorialmente, o hábito de muitos fumadores imergirem o bico dos seus charutos nos seus licores prediletos, antes de acende-los. E de forma impositiva e ditatorial abjurava a “heresia” por “prejudicar o sabor perseguido pelo fabricante”.

 

Ora, meu Deus! De que vale o sabor perseguido pelo fabricante, se o sabor que eu persigo é a simbiose do sabor do meu charuto querido com o sabor do meu licor predileto?

 

“Gostos são regalos da vida” afirma a sabedoria popular. Portanto – e que me mandem, os ortodoxos, para o inferno de Dante – use e abuse da imaginação.

 

Apraz-lhe embeber em licor seu prazer predileto? Faça-o!

 

Sem medos e sem constrangimentos. Seu charuto-parceiro (ou sua parceira?), agradecido, lhe retribuirá em dobro sua capacidade de se evadir dos lugares comuns da vida.


141.    DUALIDADE

Associar o mundo da alta tecnologia com a atividade artesanal charuteira é tarefa, à primeira vista, impossível. E, quando se trata do fabrico propriamente dito, inalcançável. No universo dos charutos artesanais, a tecnologia só pode ser periférica. Sistemas informatizados avançados são implantáveis apenas nas áreas da contabilidade, dos custos, do processamento de dados em geral, das comunicações. É o que a fábrica de charutos Menendez & Amerino vem fazendo ao longo dos últimos anos. Por isso, quem visita dita empresa, constata funcionarem, ao mesmo tempo, dois mundos diversos.

 

Ao entrar na área administrativa, se depara com moderno escritório, computadores por todo lado, coisas bem do século atual. Já, ao ingressar na área da produção, retrocede-se ao século 19. Dezenas de operárias no labor manual de acariciar fumos dos quais brotam os charutos Alonso Menendez, Dona Flor e Aquarius. Uma inesquecível volta ao passado, sempre registrada em fotos, e amparada pelas histórias e explicações dos cicerones.

 

E os que, como eu que ali trabalharam incontáveis anos, têm a satisfação profissional de conviver com duas distintas épocas.

 

A contemporânea das comunicações interdepartamentais on-line e a pretérita, dos suados labores tabaqueiros. Com a meninada ágil no teclar computadores e com a velha guarda, encanecida e hábil na tarefa de espalmar fumos, transformando-os nos rolinhos mágicos que nascem e morrem para nos dar prazer.

 

Uma dualidade aparentemente antagônica na qual as partes convivem harmoniosamente.


140.    APOSENTADO

Ah! Pois! Não é que num quase piscar de olhos, tempo do halo de um suspiro, a vida me pregou uma peça e me fez aposentado do trabalho? Os 45 anos de atividades em ritmos que acompanharam os boleros, os sambas-canções, a bossa nova, o rock, os axés-music resolveram se adaptar ao ritmo das valsas. E isso em tempos de pleno “arrocha”.

 

De repente me senti como se ficasse em verdadeira contramão musical.

 

Meu charuto que não sabe distinguir uma sinfonia de Bethoven de uma música caipira, fiel companheiro desde os anos andróginos do Pavão Misterioso de Ney Matogrosso, de nada se deu conta.

 

Para ele – o charuto – a palavra aposentos, raiz de aposentado, sempre representou um quase nada.

 

Nascido para os grandes espaços, amante do ar livre, detesta paredes limitadoras de horizontes.

 

Pensando em tais coisas concluo que, assumindo um novo ritmo musical na vida, a rigor, em vez de me ter aposentado, desaposentei-me. Adeus confinamento das quatro paredes do trabalho.

 

Agora sim! Estou livre para satisfazer todas as vontades do meu charuto. E, se não per omnia seculorum, que assim o seja por mais alguns anos.

 

Amém!

139.    DEIXA A VIDA ME LEVAR

 

E aos trancos e barrancos lá vou eu; sou feliz e agradeço por tudo o que Deus me deu!

(Zeca Pagodinho em “Deixa a vida me levar”)

 

 

Zeca Pagodinho expressou em pouco, o muito que todos nós sentimos. Espelhando o otimismo da alma nacional, me botou p´rá pensar.

 

Em muitos sábados, com meu charuto das primeiras horas, costumo fugir de São Gonçalo. Cedinho, pego a estrada para Feira de Santana e deixo a vida me levar para um boteco de arrabalde feirense. Ali se come um mocofato matinal de fazer inveja a obesos e hipertensos.

 

Mas, me deixe tentar explicar que prato é esse tal de mocofato. O nome desta iguaria nasce da contração das palavras mocotó e fato. Mocotó, o Brasil inteiro sabe o que é. Já, fato aqui no nordeste é o “bucho” do boi, composto por não sei quantos meandros entre os quais, o mais conhecido e apreciado, é a “dobradinha”, a que os gaúchos chamam de “mondongo”.

 

Oito horas da manhã, já lá estou no referido boteco disputando espaço para encarar o ímpar desjejum. Servidas em prato fundo, aquelas mil carnes exalam aroma inconfundível. A maioria das pessoas as come adicionando farinha e pimenta. Eu prefiro passar antes na padaria. Com dois pães e uma cerveja preta amarga, está feita a festa.

 

Depois, como se tentando abrir espaço no ventre, espicho as pernas por debaixo da mesa, acendo meu Robusto predileto. Ninguém reclama. Ao contrário. Volta e meia, um dos parceiros do anônimo encontro sabatino, me pergunta se ainda tenho outro charutinho.

 

E ali, olhando para ontem, me deixo ficar, digerindo o mocofato e saboreando meu puro. Findo este, retorno a São Gonçalo para encontrar, na Pousada do Centenário, meus parceiros de baralho e de outros charutos. E, assim, deixo a vida me levar. E sou feliz e agradeço, por tudo o que Deus me deu.


138.    INFERNO ASTRAL

Há tempos não escrevo, embora minhas crônicas venham sendo publicadas regularmente. Alterno períodos de grande atividade, nos quais produzo textos para vários meses, com outros fartos em falta de inspiração. São os meus infernos astrais quando, literalmente, um raio cai em minha chácara, queima o computador, a parabólica, o decodificador da TV; o carro “quebra”; os negócios murcham; tenho que acertar contas com o “leão”; a sogra enche o saco; uma das filhas se separa; a cervical, comprimida pela tensão muscular, dói; outra das filhas é assaltada à luz do dia; uma das ex-mulheres enfrenta dificuldades financeiras; os meninos “inventam” tomar banho de piscina em dia nublado; toda a comida fica sem sabor; chove aos domingos e sei mais lá o que. Ainda bem que em meio a tais vicissitudes temporais, meu charuto se mantém incólume. Estou acabando de sair de um tais mares tormentosos. Por isso este intróito.

Acendo meu Robusto, desligo o telefone, repleto a taça com meu tinto e, num quase meio dia de um domingo fosco – tênue resquício do mar de tormentas enfrentado -, volto a falar dos meus charutos. Desta feita para agradecer-lhes sua silenciosa companhia durante a borrasca.

Minha mulher, que não aprende quando quero ficar na solidão dos meus escritos, se aproxima e me beijando, carinhosamente, ao ombro, me interrompe.

Júlio! ralha com um dos pequenos – Aí não é lugar para se fazer xixi!

Meninos - prossegue ela - está chovendo! Saiam já!

Quero a bóia, mamãe! – diz um deles.

Bóia, uma banana! Saiam! Saiam! Saiam!

E nesta confusão, sai, não sai, desfruto meu charuto vendo a chuva desfazer-se em água no jardim da casa.

Os meninos deixam a piscina.

Vam’embora meninos, tomar banho de chuveirão!

Eu não, mamãe! contesta o menor, completando - a piscina está limpinha, o papai limpou!

Agora, vá se explicar ao guri que Chico não é Francisco.

Meu charuto adverte que não adianta insistir. Acorro no litígio em favor do pequeno.

Somem todos. Faz-se silêncio. Maior ainda quando desligo o zumbido elétrico do motor da piscina.

Agora sim! Alcançada a paz total, volto a escrever e, por entre as espirais das últimas fumaças de meu charuto, vejo brilhar um novo tempo.


137.    ESPELHO MÁGICO

Já estou acostumado às vicissitudes da vida. Passo por elas, ao largo, vendo-as se desmancharem nas brumas do passado, com a mesma velocidade que, no equador, o dia se transforma em noite e vice-versa.

Infenso a elas, miro no espelho os cabelos embranquecidos. Por detrás de minha imagem, como miragens, apessoam-se etéreos vultos de experiências vividas por muitos de meus amigos confidentes.

Acendo meu Alonso Robusto. Deixo vagar o pensamento enquanto a doce fumaça, mágica e conselheira, inebria o ambiente. E vejo, no vítreo painel à minha frente, que os anos passaram de distintas formas para uns e para outros.

O espelho se transforma numa bola de cristal plana. Nos cantos, os amigos distantes, aos quais muito quero e dos quais pouco sei. Acima de meus ombros, os mais próximos. Cada qual com sua história e com seus sonhos realizados ou desfeitos. Vejo também amigos de cuja convivência a vida, cedo me furtou. Lembro outros companheiros de jornada com os quais, assim como comigo,  ela, a vida, foi muito generosa.

Não me refiro a bens materiais. Não valem nada. Falo do avançar dos anos tendo, na justa medida, temperado os fugazes momentos de vitórias, com os infindos momentos de derrotas. Falo do saber erguer as colunas do templo de Salomão. Da pacífica sabedoria de haver aprendido nada saber. Da terna alegria de haver plantado árvores, de ter tido filhos e de, volta e meia, escrever. Do especial prazer de fumar meus charutos. Da felicidade de ter leitores que apreciam minhas crônicas. Falo do meu trabalho, hoje raro privilégio para os jovens e inalcançável para os que, quando velhos, o perderam.

A luz se apaga. As imagens somem restando apenas, na penumbra, a ponta acesa do meu puro. Sopro-a ativando a incandescência. Giro velozmente o charuto no ar, descrevendo círculos. Brinco qual criança que se encanta com o círculo de fogo. Descrevendo um grande arco que se reflete no espelho mágico, tento aprisionar as imagens e lembranças que se foram.

Trago você para junto de mim e enquanto desfruto a última baforada de meu charuto, me despeço de você.

Até nosso próximo encontro.


136.    CHARUTO DESFOLHADO 

Recordo o ano e o evento: 1980, lançamento dos charutos Alonso Menendez no Rio de Janeiro. Lá estávamos eu e o próprio Alonso Menendez, irmão mais velho de Felix Menendez, que então residia na Bahia. Fazíamos as honras da casa aos incontáveis convidados.

Dentre destacáveis  presenças, lembro de Nestor Jost, ex-senador e ex-ministro, e do jornalista Carlos Heitor Cony, ambos eméritos apreciadores dos charutos. Ao primeiro já conhecia de longa data. A Carlos Heitor Cony conheci naquela oportunidade. Dr. Nestor, como sempre foi carinhosamente chamado no meio tabaqueiro, presidiu por muitos anos, a ABIFUMO – Associação Brasileira da Indústria do Fumo, e Carlos Heitor Cony, em diversas de suas crônicas fez alusão aos charutos e suas maravilhas.

Mas, como soe acontecer em tais oportunidades, além de fumantes iniciados e gente do ramo, também estavam presentes pessoas sem a menor intimidade com o mundo dos puros.

A um generoso comes-e-bebes se associou, como não poderia deixar de ser, farta distribuição dos novíssimos Alonso Menendez.

Mãos ávidas se lançavam em direção aos tabuleiros com charutos, que circulavam amparados por graciosas recepcionistas.

Os gestos revelavam a incontida ânsia em provar a novidade. Isqueiros e guilhotinas, como em passe de mágica, de prestativas mãos, apareciam ao momento em que qualquer conviva se dispusesse a acender seu charuto.

Fumacê geral. Repórteres de jornais e TVs ocupando a mim e ao Alonso, dando pouco tempo para conversarmos com os demais convidados.

Quase todos circulavam fumando os desejados puros.

E eis que, em meio aquele auê enfumaçado e festivo, noto que num dos presentes, charuto à boca, este se desfolhava tristemente.

De pronto parto em direção ao dito, na tentativa de resolver o impasse, sendo logo recebido com a peremptória afirmação de que o charuto estava com defeito e, por isso, desfolhara-se.

Que fazer?

Nada de discussões.

Saquei do bolso outro Alonso Menendez, cortei-lhe a ponta e o ofereci ao fumante, auxiliando-o a acende-lo.

- E agora? perguntei.

- Ah! Este sim, está perfeito!

Moral da história: o cara nada conhecia de charutos. Após guilhotinar o puro se confundira, levando à boca o pé do charuto e, por conseqüência, acendera a ponta que cortara.

O resultado não poderia ser outro. Depois de alguns instantes a capa se soltara, desfolhando-se.

Ficou disso tudo, quando nada, a experiência para falar de charutos desfolhados, 24 anos após.

135.    EXPLODE CORAÇÃO!

 

Companheiro de emoções, meu charuto teima em ter-me sempre a seu lado. Um verdadeiro amigão. Quer nas quietudes dominicais, quer no agito dos demais dias, não me abandona. E entre nós há um gostar que reconhece os dias, fazendo variar a intensidade do pulsar cordial na forma inversa da paz exterior. E o digo cordial posto se tratar do próprio coração.

 

Digo do afeto, do gesto, do carinho.

Do aroma, do silêncio, do sozinho.

 

Um ser-viver.

 

Inacessível para muitos. Compreensível para poucos.

E os poucos que o compreendem sabem que não se necessita muito.

 

Um puro e um canto encantam.

 

Fechando os olhos e incandescendo a mística mistura, chego à máquina da vida. A qual, como agora, nesta pax dominical, reconfortada pelas reminiscências que me acodem, num especial compasso tiquetaqueia emocionada.

 

Explode coração!

134.    ALIANÇA

 

A política da província-de-são-gonçalo-dos-campos-da-bahia não é, habitualmente, tema de minhas crônicas. Afinal, sendo algo de foco tão restrito, que interessaria a meus leitores deste Brasil afora, falar de coisas da minha pólis?

 

Mas, neste ano eleitoral está havendo – e me perdoem os que me lêem e meus charutos – um caso digno de registro, inacreditável.

 

Nossa pequena cidade vive, há uns 30 anos, sob a dicotomia dominial de dois senhores, inimigos ferrenhos. Não se falam. Detestam-se mais do que os antitabagistas de carteirinha detestam os fumadores de charutos. O desprezo recíproco sempre foi enriquecido por ofensas pessoais. Daquelas de atingir as genitoras.

 

Neste tempo todo, quando não foram prefeitos, elegeram-nos, sempre na tentativa de continuarem suas dominações. Alguns dos prepostos eleitos aceitaram o “cabresto”. Outros, nem tanto. Semearam pois, inimigos políticos, os quais, sem alternativas, migravam para as hostes adversárias, num vai-e-vem que, no fundo, convinha aos dois senhores, por manterem o status quo.

 

Um de tais senhores apoiou, nas últimas eleições, um irmão seu o qual, assumindo o governo municipal, se insurgiu, evadindo-se das hostes fraternas e não migrando para o adversário histórico, vem tentando abrir seu “espaço próprio”.

 

Pois creiam. Os dois “detentores do poder” (leia-se votos) aliaram-se na tentativa de impedir da re-eleição daquele que tenta renovar a política municipal. O hilário de tudo é que os novos aliados, dos quais um é candidato a prefeito, continuam sem falar um com o outro. Comunicam-se por serviçais emissários.

 

E neste imbróglio, desfrutando a paz do meu charuto, constato o quanto o desejo de não se abrir mão do poder é capaz de juntar, num mesmo saco, gatos e ratos, raposas e galinhas, pondo irmãos de sangue em campos opostos.

 

A funeral tristeza que me açoita me faz crer, por entre a fumaça do meu charuto, que o povo de minha cidade não se deixará iludir pela incompreensível aliança.


133.    NOVA ERA

Essa coisa da comunicação meio hipnótica do “em verdade, em verdade, vos digo” me faz refletir se, em verdade, aquilo acontecera ou fora um sonho. Postada ao balcão do bar, desfrutando um puro, a Vênus em noite de musa, virara-se para expelir a azulada nuvem de fumaça. Justo quando eu, por ali, passava.

 

Constrangida por me haver incensado, sem o saber, com meu predileto aroma, desfizera-se em desculpas socialmente compreensíveis. Deixei-a a vontade em suas justificativas e fiz eterno aquele intervalo de tempo, tão breve quanto um piscar de olhos, no desvanecer-se da névoa enfumaçada.

 

Era uma noite de encantos. Charutos em todas as mãos e em todas as bocas. Homens e mulheres desfrutavam o invulgar prazer de fumar puros. Como pano de fundo, em verdade vos digo, música caribenha incitava o relaxamento corporal. Descompromissos totais. Gente bonita fazendo a festa mais bonita ainda.

 

A música e o charuto eram os elos condutores que faziam todos se sentirem a vontade como se fossem velhos conhecidos.

 

Em verdade vos digo nada haver visto igual, em matéria de comemoração charuteira. Tratava-se da apresentação dos charutos Aquarius ao distinto público. Alegria que anunciava uma nova era para a Menendez & Amerino.

 

Colunáveis, amigos da casa, um público adulto que sabe das boas coisas da vida. Badalações. Azarações. Gente encantada.

 

Um novo tempo.

Uma nova era.

Aquarius.

 

 

 


132.    PRESSENTIMENTO

 

Pressinto que em algum lugar do passado esculpi, em frondosa árvore à beira do caminho-vida, as presentes palavras. Como não recordo onde, nem quando, inebriado pelo meu Alonso Menendez Robusto, volto a faze-lo. Desta feita deitando as palavras sobre a celulose que foi árvore e, depois, se fez papel.

 

Árvores frondosas, as tenho. Muitas. Foram plantadas ao longo da existência. São meus amigos conquistados graças à magia e ao encanto da arte e do prazer de fumar puros. Meus leitores são também árvores em cujas sombras amenas, encontro refrigério e entusiasmo para prosseguir na jornada.

 

Não importa que Você, árvore amiga, desconheça esse passageiro da vida. As árvores não têm tal obrigação. Sei onde encontra-lo e, desfrutando do prazer de meus puros, com regular freqüência vou me abrigar na sua sombra-leitura de minhas enfumaçadas crônicas.

 

Que bom seria se pudesse eu acionar encantos e desvendar mistérios.

 

Encantaria Você com meus escritos e com meus charutos, sem rodeios ou meias-palavras, lhe desvendaria as místicas nuances que transformam um comum mortal, num imortal comum.


131.    RESTAURANTE DE BERÉ

 

Aqui na província-de-são-gonçalo-dos-campos-da-bahia, come-se relativamente bem, mas fuma-se melhor ainda. Estou no restaurante de Beré. Senhora de segredos culinários baianos, Beré, na sua casa de pastos que acumula funções de moradia, tem tradição de bem servir há mais de vinte anos.

 

A limpeza que se percebe desde a entrada, mesclada à extrema simplicidade das mesas de ferro, dos vasos com plantas por todos os cantos, obscurece a mistura de diferentes pisos, cores e revestimentos das paredes que formam o ambiente. Das toalhas verdosas sobre avermelhadas mesas. Tudo está nos conformes interioranos. Pratos (fundos) emborcados, escondem os talheres, protegendo-os. Quadros de gosto um tanto quanto duvidoso pendem nas paredes. Colocados ao acaso disputam espaço com os amarelo-claros e rosa-apessegados das paredes. Não vale a pena aprecia-los.

 

Vale, isso sim, perguntar: O que temos hoje, Beré?

 

São mil coisas diferentes. Não irei denunciá-las para não lhe dar água na boca.

 

Resposta recebida, a dúvida. Compartilhada com os diversos companheiros que se encontravam comigo. Cheiros gostosos e sedutores recendem lá das bandas da cozinha misturando-se ao aroma do Dona Flor Pirâmide que estou fumando.

 

Depois de  negociados, entre todos, os anunciados prazeres gastronômicos, chega a comida. Resplandecente. Abundante. Mil complementos, dispensáveis, cercam os pratos encomendados.

 

O D. Flor Pirâmide, depositado no cinzeiro,  em ritual de fim de vida, deixa evolar suas fumaças estertoras. E eu, satisfeito, em meio a um turbilhão de gostos e aromas, pronto para acender meu digestivo D. Flor Petit Corona, lembro-me de meus leitores, redigindo mais uma crônica.


130.    ORIGEM CERTIFICADA

A crônica de hoje é um tanto quanto hídrica e, por isso, espero não fique “aguada”. Recomendado que fui, por questões hepático-pancreáticas, de não buscar inspirações vinícius-etílico-de-morais, lá me vou com meu Dona Flor Double Corona, enfrentar o desafio de contornar mais um casamento desfeito. Assunto em que fui mestre.

 

O diálogo álcool-tabaco acabou. A “casa” ficou meio vazia. Tento preencher o vácuo da companhia  que se foi com litros de água de coco. E, naturalmente, com gelo para, quando nada, evocar o tilintar apreciado pelos bons bebedores. Assim ao menos, não privo meus ouvidos do prazer da cristalina sonoridade. Então, como não falta (quase) nada o jeito é me adaptar aos novos tempos. Como, dia a dia, o faço na vida.

 

Sorte que meu charuto, não se dando conta da ausência, se deixa evolar como se nada tivesse acontecido. O que me conforta e anima para voltar a falar dos bons puros baianos.

 

No mundo, tudo o que é bom nasce em chamadas zonas demarcadas e tem certificado de origem. Os cultivares são protegidos. Cognac, champanhe, vinho do porto, são exemplos marcantes e clássicos. No Brasil a legislação a respeito é bastante nova. Data de 1997. E até agora, pelo quanto eu saiba, apenas vinhos gaúchos de Bento Gonçalves, conseguiram o reconhecimento de origem do chamado “Vale dos Vinhedos”. Cafeicultores de Minas Gerais trabalham também no sentido de obterem tal certificado.

 

Na Bahia, a grande zona geográfica, na qual se situa São Gonçalo dos Campos, única região do mundo onde se produzem os fumos Mata Fina e Mata Norte, está a merecer tal reconhecimento. Nossos melhores charutos, os Alonso Menendez e Dona Flor, têm em si mesmos, de forma nata, tal certificado de origem.

 

E, assim como os baianos se envaidecem dos seus fumos por fazerem parte da sua cultura, os brasileiros se orgulham por terem, em casa, um prazer exclusivo. Único no mundo, em qualidade e autenticidade.

129.    RECEITUÁRIO

 

Com o  passar do tempo, à medida que desenvolvemos o senso da mortalidade – típico dos idosos – a vida nos ensina a abdicar de umas quantas coisas. Agitação urbana, álcool, gorduras, tabaco, sedentarismo, etc. se unem para formar um complô conspirativo adverso às inspirações que eles motivam.

Somos, por força dos anos e quando, é claro, conseguimos desenvolver uma consciência crítica, naturalmente induzidos a fazer eleições, preferenciando uns prazeres, em detrimento de outros. 

Algumas pessoas há até, quais monges tibetanos, que agem de forma radical. Abdicam in totum, de tudo. Os prazeres da carne, os etílicos, os do ócio, os fumígeros et caterva, deixam de fazer parte dos seus cotidianos. Naturalistas – em busca da eterna juventude – se transformam em verdadeiros atletas, querendo prolongar ao máximo suas vidas.

Eu, gaúcho sexagenário e réu confesso dos veniais pecados que edulcoram a vida, tenho procedido também minhas eleições e abdicações.

Menos mal que as mesmas tendo nascido de dentro para fora, não me havendo sido impostas por terceiros, não me foram traumáticas. Ao contrário. As ausências decididas passaram a se revestir de um caráter especial: a vitória da vontade própria contra dependências avassaladoras.

De grande amante da noite, passei a dormir cedo. De emérito bebedor de destilados, passei a me satisfazer com uma taça de vinho. As carnes vermelhas, sem as quais seria incapaz de viver um dia sequer, passaram a ser ocasionais desfrutes gastronômicos. Nunca fora obeso. De doces nunca gostara. Duas preocupações a menos. Da agitação urbana, me desvencilhei há mais de uma década, elegendo uma cidade interiorana.

Tudo se transformou de forma natural, sem autoflagelos, sem sentimentos de culpa, sem saudades. Um reaprendizado do viver.

De uma coisa somente não abri mão, nem parcialmente. Dos meus muitos charutos diários. O primeiro, sempre, às 6:30 horas do dia. Nem que soem trovões em tons longos de guerra, nem que a vaca tussa, nem que o mundo caia sobre mim, quero abandona-los. E, também, não terá essa de ficar correndo pelas ruas, com tênis da moda, cronometrando batidas cardíacas, inspirações e expirações. 

Minha freqüência cordial independe da velocidade do meu corpo. Acelero-a ou retardo-a no rememorar amores. E minhas “inspirações” brotam da fumaça mágica dos meus charutos. Como acontece agora. Quando acabo de lhe passar meu receituário para uma longa e proveitosa vida.


128.    PUROS E DIFERENTES

 

Andar por corredores e setores de uma fábrica de charutos feitos à mão é, sempre, uma experiência inesquecível. Faço isso diariamente, um tanto desatento. A passos largos, parto do setor administrativo, em direção a uma determinada área fabril, para tratar de certo assunto, e as operárias, na sua faina, passam por mim como paisagens passam pela janela de um trem veloz.

 

Vezes há, como se lenha faltasse à fornalha, quando paro em meio ao caminho para assistir ao nascimento de mais um puro: o compasso das morenas mãos habilidosas parindo e trazendo ao mundo mais um bom charuto brasileiro.

 

É incrível como aquelas folhas secas se transformam, em piscar de olhos, numa regalia que irá correr mundo. Seu destino nasce traçado. Basta superar as etapas subseqüentes que controlam a qualidade, para receber o anel que lhe batiza e lhe confere berço.

 

Nome e berço, dois distintos fatores de algumas das boas marcas que o Brasil produz. Entre elas os Alonso Menendez e os Dona Flor, charutos com um passado e que têm histórias a contar. Não nasceram filhos da aventura. São descendentes dos laços do amor e da tradição. Que não (re) inventam estórias, nem folclores. Que são o que são. Autênticos puros da nossa melhor tradição charuteira. Representam a técnica cubana pelas mãos de brasileiros, mas que não pretendem, nem querem, ser mais ou menos saborosos que outras afamadas regalias mundiais. São apenas, e tão somente, puros e diferentes. E isso eu sempre constato, nas minhas andanças pela fábrica, ao congelar determinada imagem do processo.

 

O enlevo, o carinho, a habilidade, a destreza, e tudo o mais que, de forma invisível, acompanha nossos charutos. Que chegam até às melhores bocas, sem dizer dos cuidados que os guarnecem. Mas que os iniciados sabem estar lá presentes, consumindo-se na fumaça mágica de mais um momento de prazer.

127.    O PURO E A PENA

Depois de um árduo dia de trabalho lá na fábrica, às voltas com equações de custeio, noite plena, venho para a varanda do hotelzinho aqui da cidade. Chegar em casa, esbaforido, com a garganta seca, e ávido para fumar em paz, meu puro, não dá.

Ouço o tim-tim do gelo mesclado ao borbulhar do generoso scotch. Os garçons daqui são bondosos. Acrescem, ao tilintar e ao borbulhar, o sempre reclamado “choro” dos bebedores de estirpe.

Um aspirar da brisa – quase um suspiro – me acode. Preparo-me, só, amigos ali ao lado sempre a jogar cartas, para mais um especial momento a três.

O primeiro gole satura as papilas e o palato, escorrendo devagarzinho garganta adentro. Boca e narinas reclamam a presença do puro.

Divido-me entre dois deles que trouxe comigo. Um Alonso Menendez #10 Claro e um Dona Flor Double Corona Mata Fina. Prazeres de distintas durações. Olho o relógio. Tendo tempo de sobra, dúvida desfeita.

Corto o bico do majestoso Double Corona não sem antes, pedir a segunda dose. A primeira, pela ansiedade da jornada, esvaira-se num abrir e fechar de olhos. Agora, fogo no puro. A azulada chama do fósforo contrasta com o marrom quase preto do meu charuto e com o amarelo-alaranjado da ponta que incandesce, ao sopra-la. Mesclam-se os matizes cromáticos. Meu puro começa a se transformar na razão para a qual foi feito. Morrer, queimando aos poucos, para dar prazer.

A primeira baforada tem nuances iguais às do primeiro gole. Olfato e gosto, ébrios de satisfação, agradecem mais este momento de paz. O tato – leia-se as mãos – também ocupados, empunham cada qual, o puro e a pena.

E tendo, apenas, o pena e o puro, me ocupo em escrever, com pena do puro que se transforma em fumaça. Assim, aos poucos, o puro e a pena cumprem seus desígnios. O puro proporcionando prazer. A pena levando, aos amantes dos puros, tudo o quanto sinto por eles.

126.    UNIDOS PARA SEMPRE

Ao longo do tempo passam por nós pessoas, hábitos, alegrias, tristezas, mil coisas. E por passarem, são simplesmente passageiras desta barca chamada vida. Outras há, amores à primeira vista ou duramente conquistados – não importa – que quando chegam, chegam para ficar. Estabelece-se, entre nós e elas, um sólido conluio e uma feliz coexistência que resiste e a tudo e a todos. Resiste à própria fraqueza da natureza humana. Sejam as tentações mundanas, seja o próprio bom senso, sejam os conselhos médicos.

Com meus charutos foi assim.

Ao nos conhecermos, em meus tempos de cabelos fartos, de logo entendemos que nossa relação não seria passageira. Mas não foi, confesso, amor de primeiro instante.

Vindos de mundos diversos, um bom tempo levamos para nos identificarmos. Afinal, mãos, olfato, boca, olhos tiveram que se acostumar a novos tatos, outros gostos e formas, até então, inusitadas. A invasão territorial de minhas sensações foi gradativa. Assumindo sempre mais espaço no dia a dia, por força do prazer e do meu próprio trabalho, os charutos invadiram, sem cerimônia, minha privacidade.

Comprazo-me em deixar-me ficar só, a um canto, confabulando com meu puro. E o faço religiosamente, com a devoção de um culto, todos os dias. É o inefável momento do por em ordem as emoções da casa. De pensar nos feitos e desfeitos da jornada e – por que não? – do pensar em nada. Um repouso. Um pouso para esvaziar a caixa preta dos registros do vôo da vida. E, com a mágica fumaça do puro amigo, deletar arquivos desnecessários, apagar ressentimentos, reativar alegrias, firmar propósitos, perdoar-me. Reencontrar-me no reencontro com meu charuto. E que assim seja.

Unidos para sempre. Amém.

125.    GUERREIRO DOS CHARUTOS

Dia desses, meu charuto me indagou donde venho. Tinha-me por baiano por viver na Boa Terra  há quase quarenta anos. Tendo lhe dito haver nascido no Rio Grande do Sul, o puro amigo, curioso, quis saber-me se nobre ou plebeu.

Confidenciei-lhe fatos trazidos pelas bocas dos mais velhos. Bocas que já se calaram há muito, mas cujos falares, misturados à névoa do meu charuto, ainda ecoam na solidão da sala do meu recolhimento.

A guerra, o gado, o peixe e o desejo de dias melhores explicam a história dos meus e, por extensão, a minha.

Meus avós paternos, de prosaico nome familiar Carvalho, de Trás-os-Montes, onde habitava a riqueza da pobreza portuguesa, vieram para o Brasil nos anos de mil e oitocentos e segundo império. O velho era artesão nas coisas do couro, correeiro como se dizia à época, e buscou inicialmente o interior paulista, aonde veio a nascer meu pai. Em começos do século passado partiu, com armas e bagagens, para o Rio Grande do Sul onde era farta a oferta de matéria prima para o seu ofício. Fixou-se lá pelas bandas de Pelotas onde havia grandes charqueadas e portanto era abundante o couro. Pelo prisma paterno pois, se vê que um pouco de minha origem está no gado e na aspiração de melhores dias.

Do lado materno meu tataravô era baiano e plebeu. Tanto que foi “convocado” para combater na Guerra do Paraguai. Teve a sorte dela sair com vida. De lá retornando, desembarcou em costas catarinenses. Começou vida nova nos lados onde hoje se situa Garopaba.

Não sei se deixou amores e parentes na Bahia. Esqueceu os seus e por eles, por certo, foi dado por morto. À época eram abundantes as baleias e livre a pesca. Dedicou-se ao mar, constituiu família e legou a profissão a seus filhos e aos filhos dos seus filhos.

Minha avó, neta dele, me contava que, quando menina, ficava no promontório elevado à borda da enseada a qual chamavam de “Vigia” e lá, enquanto brincava, vigiava a chegada das baleias, correndo morro abaixo para ir avisar a chegada das mesmas, ao pessoal da pesca. Teve uma única filha, em Garopaba, nos anos vinte do século que já se foi, minha mãe. O Bittencourt materno que me chegou, proveio de meu avô, um catarinense com patronímico dos franceses da pequena colônia destes, existente na terra dos “barrigas-verdes”. 

Os catarinenses pescadores costumavam migrar para a cidade de Rio Grande, onde “deitavam suas redes” na então, abundante pesca de tainhas. Meus avós para lá foram. Vê-se pois que pelo lado materno um pouco de minha origem está na guerra e na pesca.

Tudo pronto, portanto, para o nascimento deste gaúcho ocasional.

O qual, seguindo a tradição, como herdeiro das vocações de seus avós, aspirando melhores dias, acabou na Bahia, trabalhando que nem um boi, e se transformando num guerreiro dos charutos e num escriba-pescador de ilusões.

Meu charuto se confessou satisfeito com as explicações.

Hugo Carvalho

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