FUMAÇA MÁGICA 309

São Gonçalo dos Campos/BA

 

FUMAÇAS DA INFÂNCIA

 

HUGO CARVALHO*  

 

A

 casa de meus avós maternos tinha um daqueles quintais que não voltam mais. Passados sessenta anos e, coisas da terceira idade, as reminiscências afluem com uma clareza, fazendo parecer que tudo tivesse acontecido ontem.

Varais com roupas sempre penduradas. Roupas muito brancas, alvejadas que eram com anil. Um galinheiro sempre em produção de ovos e pintinhos. Um galo madrugador. Grama e capim nativo onde eram escondidos os “ninhos” na festa da Páscoa. Umas tantas folhas de zinco amparadas por pés toscos de madeira, reservado para corar as roupas ensaboadas, antes da lavagem final. Não havia alvejantes. A velha QBOA, precursora dos ditos, surgiu no Sul, acho que foi em 1951, numa campanha de marketing majestosa. Pequenos aviões sobrevoavam a cidade, escrevendo no espaço a palavra QBOA, com fumaça as letras gigantes. Inesquecível.

A casa enorme, de madeira, na cor sempre cinza, tinha assoalho de madeira nua crua, branco de tantas vezes escovado, protegido corredor afora, por um floreado tapete de linóleo, espécie de “plástico” da época. A água era encanada, mas a iluminação deficiente. Não tínhamos chuveiro elétrico. E a geladeira. Ah! A geladeira não elétrica era algo que se parecia com um cofre, daqueles que também só existem em nossa memória ou em museus. Os vendedores de gelo em barras, os geleiros, passavam regularmente lá em casa para nos abastecer. Assim como o leiteiro e o padeiro, que todos os dias, deixavam à porta da casa seus produtos. Ninguém mexia.

Nosso gato chamava-se Secretário. A cadela, pé duro pequena, ágil e branca, atendia por Pombinha. Quando Pombinha morreu, foi um auê, com direito a enterro num dos cantos do quintal, envolta num pano tão branco quanto ela. Depois, foram plantadas flores sobre seu “túmulo”. Quanto a Secretário, não recordo sua desaparição. Mas, e isso foi muito divertido, um dia, o bichano que era amarelo, apareceu com os pelos todos verdes, endurecidos pela areia na qual se espojara, tentando livrar-se da malfadada tinta. Sobreviveu.

Tínhamos também – o xodó de meu avô – um curió engaiolado e cantador. A gaiola, à noite era pendurada numa das paredes do banheiro. Os mosquitos eram combatidos com espirais Boa Noite. Um dia o “progresso” trouxe o inseticida Super-Flit, propelido por uma bomba aspersora. E o velho, faceiro e desavisado das propriedades letais do veneno, borrifara a casa toda. O banheiro inclusive. Dia seguinte amanhece o passarinho, morto e espichado no chão da gaiola. Foi outro arerê e uma das raras vezes que testemunhei um arranca-rabo entre meus avós, casados que foram até a morte. Amavam-se à moda antiga.

Ele, ferrenho flamenguista dos tempos do treinador paraguaio Fleitas Solich, ouvinte cativo da Rádio Tamoio, tomador de chimarrão aos fins de tarde, quando se ligava no programa Ave-Maria de Júlio Louzada. Para quem não sabe, à época, tal programa era aquilo que ora se chama líder de audiência. O Brasil todo escutava seus conselhos matrimoniais, tendo sido inspiração para uma marchinha carnavalesca. A mulher do meu maior amigo / me manda bilhetes todo dia /desde que me viu, ficou apaixonada / me dá um conselho, seu Júlio Louzada.

O velho tinha um cacoete, marca registrada dos momentos seus, assim como os charutos são a marca registrada dos momentos meus. Com a unha do polegar da mão direita pressionava a dentadura superior para, a seguir, articulando o maxilar, bater por duas vezes as dentadura superior e inferior. Crac-crac; crac-crac.

Não bebia. Ao redor dos cinquenta anos abandonara o hábito de fumar seus cigarros feitos à mão. Fumo desfiado, envolto em papel de seda, marca Colomy, desses que a rapaziada hoje usa para seus “baseados”.

Já minha avó, essa sim, destemperada verbalmente, apreciava vermute tinto doce Cinzano. Guardava a garrafa na parte inferior da cristaleira que ficava na sala de visitas.

Como meninos tudo descobrem, belo dia às escondidas, enchi um copo, ingerindo tudo de uma só feita. Foi a primeira e última vez que bebi vermute em minha vida. Ainda lembro da cabeça rodando, rodando, dos vômitos inacabáveis, ajoelhado com a cara metida na latrina. E sem nada reclamar, pois se o fizesse “o pau comia”.

Ainda não haviam lá chegado os colchões de mola. As molas eram as da própria cama, sob uma esteira de arame. Boas camas eram as marca Patente. Os colchões de palha ou crina de cavalo, envoltas em tecidos de chita multicolorida. Com o passar do tempo, endureciam-se a mais não poder.

Para coisas rápidas, a fervura do leite ou da água para o chimarrão, usava-se um fogareiro de pressão. Tais fogareiros, da marca Primus, lá no Rio Grande, estavam em todos os lares. Além do querosene como combustível, exigiam o uso de álcool para aquecer o bico injetor ao qual chamávamos de “ouvido”. Volta e meia tinha-se que desentupir o ouvido com uma agulha própria e, quando a agulha quebrava lá dentro...

O fogão era a lenha, fornecida por lenheiros, em “achas” com cerca de um metro. Quanto trabalho para cortar, com a machadinha, tais achas em três pedaços... Quando o vento refluía - lembremos que no Sul sopra famoso “minuano” - haja fumaças na cozinha!

Fumaças que neste instante me chegam, misturando-se com as do meu charuto.

Fumaças da infância.


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HUGO CARVALHO - economista gaúcho que se fez baiano em 1965, aos 24 anos de idade. Missivista por força de ofícios quando jovem, hoje, aposentado, mata saudades do passado escrevendo crônicas.

 

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