FUMAÇA MÁGICA 303

São Gonçalo dos Campos/BA

 

TUNDA

 

HUGO CARVALHO*  

 

N

os grandes quintais de antigamente era onde aconteciam os folguedos e as peraltices da infância. Eu e, por certo, os das gerações que ultrapassaram a barreira dos sessenta anos, guardamos as melhores recordações daqueles tempos. No espaço da meninada havia árvores, jardins, gramado nativo, a “casinha” do cachorro, o varal de secar roupas, o quarador (lugar exposto ao sol, onde se deixavam as roupas ensaboadas para alvejar, um “quartinho” aos fundos para guardar a “bagulhada” da casa, e terra. Muita, muita terra na qual nos espalhávamos, corríamos, jogávamos gol a gol com bolas de meia (pequenas bolas, feitas em casa), disputávamos campeonatos de bolinhas de gude e de futebol de botões de mesa, pulávamos corda, empinávamos pandorgas (arraias, papagaios, pipas), soltávamos balões, brincávamos de nos esconder uns dos outros, de pegador (picula), de estátua, as cantigas de roda, jogávamos amarelinha, rodávamos o arco e o pião, brincávamos de cabra–cega e chicote queimado, molhávamos a roupa do quarador e aproveitávamos a ocasião para jogar água uns nos outros, dávamos milho para as galinhas.

Ah! As galinhas! A paixão de minha avó.

Ela coletava, todo o santo dia, a produção de ovos, com a mesma regularidade que meu avô, invariavelmente, tomando seu chimarrão, escutava o programa “Ave-Maria” de Júlio Louzada, na antiga Rádio Tamoio. E, detalhe interessante, a velha datava os ovos, um a um. Entende-se a razão. Não tínhamos geladeira e no uso diário, portanto, usavam-se sempre os ovos mais velhos.

Até aí, tudo bem. Deixem-me, agora, acender meu charuto-amigo para prosseguir a narrativa.

Acontece que, eu e meu irmão Hélio (pouco mais novo do que eu, porém já falecido), adorávamos comer ovos crus e quentes. Era escutarmos o cocoricó e lá íamos nós consumirmos a preciosidade, escondendo as cascas.

Tendo a velha verificado a queda de produção das galinhas, deu-se conta do que fazíamos. Proibidos que fomos em nossas precipitadas incursões, tivemos que passar a nos contentar em ouvir as galináceas anunciarem suas posturas. Belo dia, porém, urdimos um belo plano em revide à proibição.

Naquela época não havia seringas descartáveis. Todas as casas, para aplicar injeções, tinham um estojo metálico contendo uma seringa de vidro e agulhas de distintos calibres. O aparato permitia convertê-lo numa espécie de fogareiro. A tampa funcionava como base onde se punha álcool e na parte principal do estojo, superposta à tampa, eram colocadas seringa e agulhas em água a seguir fervida, para esterilizar o material.

Pois bem. Fomos, meu irmão e eu, atrás do dito estojo. Mexe aqui, mexe ali, mexe acolá. Eureka! Tínhamos em mãos a solução do nosso problema: comer os ovos sem reflexos na produção diária.  A satisfação foi a mesma que a proporcionada pelo charuto que agora me inspira. Pegamos, a seguir, um toco de vela numa das gavetas da casa e ficamos à espera e à espreita do momento oportuno.

Cocoricó! Cantou uma das galinhas.

Festiva e furtivamente partimos em direção ao novo ovo. Com uma das agulhas fizemos um orifício em cada extremidade oposta e sugamos gema e clara. Passo seguinte valendo-nos da seringa, enchemos o mesmo com água, fechando os orifícios com ajuda da vela. Devolvemos o dito ao ninho e, faceiros da vida, barrigas felizes, nos divertimos a valer dando gostosas risadas. E isso, por dias seguidos.

O tempo passou. Já houvéramos esquecido o fato, envoltos que andávamos, sempre, em novas travessuras.

Como disse, a velha datava os ovos e chegara o dia de consumir o primeiro dos falsos e malfadados. Foi quando escutamos um grito de terror, seguido de xingamentos não publicáveis, lá pelas bandas da cozinha de fogão à lenha.

Eis o quadro. Nossa avó quebrara o ovo diretamente sobre a frigideira contendo banha fervente. Queimou mãos e braços com os respingos. Foi quando nos demos conta das consequências da brincadeira.

Não se faz necessário dar detalhes quanto à bela e merecida tunda, ou surra como queiram, que tomamos.  


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HUGO CARVALHO - economista gaúcho que se fez baiano em 1965, aos 24 anos de idade. Missivista por força de ofícios quando jovem, hoje, aposentado, mata saudades do passado escrevendo crônicas.

 

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