FUMAÇA MÁGICA 288

São Gonçalo dos Campos/BA.

 

DESABAFO

 

HUGO CARVALHO*

 

M

inha terra tem aspectos interessantes. Embora seja a cidade brasileira com o maior índice de charutos per capita (alguém, por acaso, já teria antes se ocupado com tal índice?), revela traços que a mantém presa a costumes de séculos que já se foram e a ausências que a fazem um pedaço de paraíso perdido em plagas de um quase sertão.

Aqui, por exemplo, não temos mar, nem elevadores. São as ausências das quais falo. Em Éden, ao Oriente, nas terras do celestial jardim, citado em Gênesis, também não havia mar. Elevadores, nem pensar. Pontos, pois, a favor da minha cidade.

Em compensação, e a tal da compensação existe para nos atormentar, cerimoniosos cortejos fúnebres ainda circulam pelas ruas centrais, urnas funerárias levadas à mão por amigos da família do morto, fazendo questão de marcar sua derradeira presença na nave da Igreja Matriz. Aqui, caríssimos leitores, continuamos velando nossos mortos nas salas das casas onde, por toda vida, viveram.

Costumes de antanho como, não faz muito tempo, ainda ao início deste século, boiadas espantadas eram tangidas pelas ruas, em direção ao antigo matadouro municipal. O corre-corre de tais oportunidades obrigava os comerciantes a fecharem as portas dos seus estabelecimentos, ante o temor de inesperadas invasões. Que aconteceram incontáveis vezes e passaram a fazer parte do folclore citadino. Agora, em sinal de respeito, eles ainda semicerram as portas quando da passagem dos que se mudaram para o andar de cima. 

Não se espantem, por favor. Mas aqui, na minha querida cidade, na região nobre que poderíamos chamar de centro histórico, na praça central da igreja devotada ao Santo Padroeiro, muitas e muitas casas ainda jogam à rua, as águas servidas de suas pias e de seus banheiros. Sabe-se, pelas bordas das calçadas – aqui ditas passeios – quando alguém da casa se banha ou está na cozinha a lavar pratos.

E o sol deste, como eu disse, “quase sertão”, em tempos de chuvas ausentes, dando sua parcela de colaboração, evaporando aquelas águas servidas, as transforma num desagradável odor-lembrete a desatentos governantes, que se sucedem parecendo serem desprovidos de narizes e nada fazem para resolver o problema.

Volto agora às tais compensações. Talvez o agradável aroma dos bons charutos desta terra seja o contraponto às indesejáveis inalações antes citadas.

Que assim seja. Não me digam que falo mal de minha cidade. Não. Estou, como inquieto participante do processo social, tecendo uma autocrítica, esperando que futuros governantes, tenham piedade de seus conterrâneos, transformando em páginas do passado, tanto os domésticos velórios, quanto as águas servidas. E que, enquanto a sanha tributária e os fundamentalistas de plantão o permitirem, deixem em paz nossos bons charutos, restos do paraíso existentes na minha terra.


É autorizada a reprodução desta crônica em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e seu autor. www.hugocarvalho.tk


HUGO CARVALHO - economista gaúcho que se fez baiano em 1965, aos 24 anos de idade. Missivista por força de ofícios quando jovem, hoje, aposentado, mata saudades do passado escrevendo crônicas.

 

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São Gonçalo dos Campos