Sobre Blends e Cachimbos

Pedro Gordilho

Antes da descoberta das virtudes da raiz de Bruyére e de espuma do mar, havia um único tipo de cachimbo conhecido na Europa, de barro ou porcelana. Hoje, a despeito de sua qualidade e do baixo preço, caiu em desuso. Mas é uma História que se estende por mais de quatrocentos anos, através da Europa.

Logo depois do cachimbo de barro ou porcelana, foi o cachimbo de espuma do mar que deu traços de nobreza ao uso do tabaco. O cachimbo de espuma do mar é, sem dúvida, o mais nobre dos cachimbos. As crônicas registram que em 1723 o Conde Gyula Andrássy, voltando de uma missão diplomática na Turquia, teria trazido um bloco desta matéria. O aristocrata austríaco tinha a seu serviço um sapateiro chamado Karel Kovacs, que exercia sua habilidade manual na decoração de pequenos objetos. O austríaco lhe confia a preciosa matéria pedindo-lhe para esculpir um cachimbo. O trabalho ficou perfeito e o Conde encantado diante do resultado obtido com o trabalho do seu sapateiro.

E se o cachimbo de espuma do mar é o melhor, é também o mais exigente. Sua fabricação, o trabalho de esculpir, o uso, devem ser objeto de constante atenção para quem deseja chegar à perfeição de ter a seu uso o mais maravilhoso dos cachimbos. A espuma é um silicato de magnésio muito tenro e poroso. É esta última qualidade que vai lhe permitir adquirir sua cor, em permanente mutação pela ação do alcatrão do tabaco.

Ao lado do tradicional cachimbo de barro, porcelana ou de espuma, um gênero um tanto particular desenvolveu-se, que evoca imediatamente o celebrado detetive inglês Sherlock Holmes. O criador do detetive, A.C. Doyle, não dá, em nenhuma passagem de sua obra, uma descrição do cachimbo por ele usado. Foi William Gillette, o primeiro intérprete do celebre detetive, quem evocará a forma de cachimbo que seria preferida por ele, entendendo que ela ia melhor com sua silhueta do que um cachimbo reto clássico. Trata-se do cachimbo Calabash. O Calabash popularizado foi provavelmente inventado pelos boers no último quartel do século XIX, e descoberto durante a guerra, da qual inúmeros oficiais britânicos participaram, entre eles Winston Churchill. É possível que os colonizadores tenham encontrado o formato consagrado localmente, ajuntando o acabamento que se vê na boca do fornilho, em espuma. Os primeiros traços de exportação visando ao mercado inglês datam de 1903, tornando bastante celebrados os cachimbos concebidos sob tal formato. É considerado o cachimbo ideal para experimentar misturas fortes e densas e é, também, em razão da facilidade que o Calabash apresenta ao fumante, o melhor dos cachimbos para o fumante que se inicia.

A fragilidade do cachimbo de barro ou porcelana, os inconvenientes de suas cópias de metal, o custo excessivo dos cachimbos em espuma, fizeram os fabricantes pesquisar rapidamente os sucedâneos das três matérias. A madeira, embora combustível, parecia indicada pela facilidade de ser trabalhada e pelo seu custo razoável. Depois de 1850, a Bruyére é o material mais utilizado, ainda concorrendo com a porcelana e a espuma do mar. Provinha essencialmente da Algéria, na época em que o país era um departamento francês. Hoje a Bruyére é obtida em outros países da área mediterrânea, Itália, Grécia, Marrocos e Albânia. A Bruyére marroquina é a mais delicada, a grega a mais popular nos anos sessenta e a mais dura. Hoje em dia é a Bruyére da Córsega a mais usada pelos fabricantes, em face da relação perfeita durabilidade/leveza. Nos anos sessenta, com a recolocação da produção cachimbeira de luxo na Itália, as Bruyéres da Toscana e da Calábria adquiriram certo renome.

O primeiro nome a sobressair na História dos fabricantes modernos é de um irlandês, Peterson. Dois irmãos Kapp se estabeleceram como vendedores de tabaco, em 1865, na Grafton Street, em Dublin. Encantados pela reputação luxuosa do seu estabelecimento, ignoravam então que iriam entrar de forma tão positiva na História do cachimbo. Sua loja vendia cachimbos de espuma e de Bruyéres de qualidade, quando, um dia, Charles Peterson propunha aos dois irmãos produzir cachimbos de um gênero novo, dotados de aperfeiçoamento particularmente interessante. A sociedade ganha o nome do novo sócio e a marca Peterson torna-se sinônimo de qualidade sem igual. O aperfeiçoamento trazido ao cachimbo, em 1898, reside no arranjo que permite uma armadilha contra o alcatrão no fundo do fornilho e de um furo particular, na extremidade da piteira, que dirige a fumaça não na direção da extremidade sensível da língua, como os demais, mas em direção da abóbada do palato. Os modelos não são numerosos, mas elegem um gosto absolutamente perfeito. Séries limitadas de Bruyéres de primeira escolha são, igualmente, oferecidas aos fãs incondicionais da marca, com sua loja ainda estabelecida em Dublin, no mesmo endereço 117 Grafton Street.

Mas a marca mais célebre de cachimbos no mundo é, sem dúvida, Dunhill. A empresa foi fundada em 1893 visando à fabricação de acessórios para a indústria recém-nascida do automóvel e de esportes mecânicos e se lança, em 1907, no mundo do cachimbo e do tabaco. Rapidamente, a loja da Duke Street, no elegante quadrilátero de Saint James, em Londres, torna-se sinônimo de luxo e qualidade. Em 1910, Dunhill cria sua própria manufatura de cachimbos na região do arrabalde de Londres, onde os cachimbos da marca continuam sendo fabricados até hoje. Depois da Grande Guerra, uma primeira loja é aberta em Paris, em onze de agosto de 1924, na Rue de la Paix, bem próximo à Place Vendôme. Mas nesta loja parisiense Alfred Dunhill não poderá vender tabaco, então sob monopólio absoluto do Estado francês. Determinado a utilizar o espaço disponível, ele se lança na criação de uma linha de objetos para fumantes, isqueiros, cinzeiros, representando o começo da diversificação voltada para uma linha de acessórios para cavalheiros, canetas, objetos de couro, relógios e gravatas. Desde seu início na aventura do cachimbo, o criador da marca fixou por princípio: qualidade absoluta, não importa a que preço, o que faz que ainda hoje os cachimbos Dunhill sejam os melhores, mas, em todo caso, os mais caros e os mais prestigiados.

Não tão conhecidos quanto o Dunhill, mas sequiosa de qualidade e das satisfações da clientela, a loja do 9, Amagertorv, no centro de Copenhague, foi fundada em 1864 por Wilhelm Ockenholt Larsen. Especializado em charutos desde 1930, o estabelecimento desenvolve rapidamente seu setor de tabacos para cachimbo e, tal como na Dunhill, propõe misturas pré-fabricadas e mélanges sob medida. A partir dos anos 1950, a casa se lança na comercialização de sua própria linha de cachimbos e reúne, com este objetivo, os artesãos mais talentosos da Dinamarca. Rapidamente a reputação de qualidade, de beleza e de originalidade dos cachimbos de Dado & Larsen faz a volta ao mundo. Na França, a marca clássica vem da sociedade Butz & Choquin associados, sogro e genro. Isso em 1858. Hoje a marca constitui um dos últimos representantes da tradição de fabricantes de qualidade de Saint-Claude e, como as outras marcas celebradas de cachimbo, associa sua atividade à distribuição de tabacos de luxo para cachimbo.

Existem numerosas variedades de tabacos e numerosos terroirs, com especificidades próprias, que permitem uma infinita variação de misturas. A variedade conhecida como Virginie recebeu seu nome do lugar primitivo de sua cultura, uma colônia britânica da América do Norte, fundada por Sir Walter Raleigh. É o mais doce de todos os tabacos de mistura e aquele em que a quantidade de açúcar é a mais elevada. Ele se queima facilmente e, empregado com moderação, tem uma doçura sutil e um sabor delicadamente frutado e levemente ácido, muito agradável ao palato. Ele serve de base a excelentes misturas em companhia de Burley, Cavendish ou Maryland, aos quais são adicionados, para enriquecer seus aromas, o Latakia ou o Perique, que criam uma Palette aromática e equilibrada.

Introduzido em data relativamente recente, o Burley foi especialmente desenvolvido na América do Norte, em 1864, nos Estados do Kentucky, Tennessee e Ohio. Este tabaco foi experimentado com sucesso na Itália, na África e até mesmo no Japão, além de ser bem reputado o Burley brasileiro. É um tabaco freqüentemente utilizado em misturas com o Maryland, e uma das variedades de tabaco para cachimbo das mais cultivadas, ao lado do Virginie. As misturas com forte proporção de Burley são produzidos nos Estados Unidos e na Dinamarca e o tão celebrado Half and Half é um exemplo clássico. As misturas dinamarquesas de Mac Baren possuem igualmente uma forte proporção de Burley, conquanto levemente aromatizadas.

Os tabacos denominados comumente de orientais são secados ao ar livre em companhia de paprika e de milho. Encontram-se em toda a região dos Balkans, da Grécia à Turquia, passando pela antiga Iugoslávia, Albânia, Bulgária e România. Suas folhas maiores servem de base ao consagrada Latakia, o tabaco que não pode faltar nas misturas britânicas. Tira o seu nome de uma cidade da Síria de onde esta forma especial de tratamento de tabaco foi descoberta no ano de 1860. Seu aroma particular decorre de que o tabaco é praticamente defumado como um presunto. Seu processus especial de elaboração, que demanda uma mão-de-obra altamente qualificada, acaba por oferecer ao feliz fumante um toque defumado característico, que combina perfeitamente com, por exemplo, um Lagavulin ou Bowmore, ou, sobretudo, com o espetacular Laphroaig, um single islay malt scotch Whisky, com cheiro e sabor levemente defumados. A maior parte das misturas propostas pela Maison Dunhill contém uma quantidade bastante significativa de Latakia, como a Mixture 965, a mistura chamada London Mixture e, em menores proporções, o espetacular Early Morning. O tabaco Balkan Sobranie é, sem dúvida, entre os tabacos com fortes proporções Latakia, o mais antigo e o mais bem-sucedido.

O tabaco chamado Kentucky encontra seu nível de secura no fogo, e recebe a denominação da região dos Estados Unidos, onde ele é essencialmente produzido. É menos forte que o Latakia, mas possui uma porcentagem mais elevada de nicotina.

O Cavendish não é propriamente um tipo de tabaco. É, sobretudo, uma técnica de preparação particular e requintada. A presença do açúcar lhe confere uma doçura que permite associar misturas com os tabacos mais fortes ou com aromas mais marcantes. É um tabaco que pode ser fumado sem mistura, que se acomoda muito bem se for associado a outros tipos de tabaco para os quais ele aporta a marca da sua suavidade. Existem Cavendish tradicionais que recebem melaço de álcool ou de agentes de sabor numerosos que vão da cereja à baunilha, da framboesa ao coco.

Finalmente o esplendoroso Perique. Com o Latakia, o Perique faz parte da elite dos tabacos aromáticos. É um tabaco de combustão lenta, perfume muito encorpado e forte, que é plantado num solo bem delimitado denominado a grande pointe, em Louisiane, no extremo sul da América do Norte, às margens do rio Mississipi. Utilizável numa proporção máxima de cinco por cento, ele confere uma cor e um perfume comparável ao Virginie. O tabaco Escudo, fabricado por Ac Petersen constitui um belo exemplo de mistura de Virginie e de Perique, da mesma forma que os celebrados Elizabethan Mixture, da Dunhill, e o Royal Jersey, da J.F.Germain & Son, Jersey, Channel Islands, Great Britain.

As lojas especializadas na revenda de cachimbos e tabacos vão se tornando cada vez mais escassas, mas com esforço ainda se logra o prazer da descoberta de estabelecimentos, geralmente amarelecidos pela lixa do tempo, talvez por esse motivo sugerindo a visita, sempre agradável. Desde 1874 estabelecida no 71 St Vincent Street, Glasgow, Scotland, Robert Graham & Co. produz excepcionais blends – associando tabacos na hora – para os aficionados e fiéis cachimbeiros da bela cidade escocesa, entre os quais o Yarrow Mixture (blend of traditional medium Virginia and Cavendish) e o Hebridean Blend (spicy blend of Virginia Cavendish & oriental latakia), o qual ressalta, sobressaindo, o celebre Balkan Sobraine. E em Durham – onde está a esplendorosa Catedral que contempla, pela vez primeira, uma arquitetura atrevida e inovadora, consagrando o estilo normando (românico) –, está, no 2-3 Indoor Market, a simpática Durham Pipe & Tabacco Shop, também oferecendo mesclas que brindam gostos especiais. E desde longa data está estabelecida na 330 Oxford Street, em Londres, a Bonds of Oxford Street, sob a direção do amavel Ramesh Shah, onde se consegue encontrar o tabaco Latakia puro, para produzir nosso próprio blend.

Quem quer que se detenha de forma reflexiva sobre o mundo dos tabacos e dos cachimbos haverá de ressaltar uma palavra que se manifesta sem cessar: a qualidade. A qualidade da estética dos cachimbos e a queda de sua fabricação, a qualidade das excelentes misturas que se mantêm vivas mercê de seus fabricantes atentos aos poucos que ainda se aventuram num mundo atualmente objeto de tanto preconceito. Com efeito, o declínio atual do cachimbo é, antes de tudo, quantitativo: ao mesmo tempo que o consumo do tabaco está diminuindo ou mesmo estagnado, é possível constatar-se que continuam existindo amantes do fumo que optam pelo cachimbo. Sob esse ângulo, os cachimbeiros dispõem de dois grandes trunfos: a menor nocividade do cachimbo em relação ao cigarro e a atração que representarão sempre estes belos objetos bem fabricados para aqueles que cultivam uma certa e prazerosa arte de viver.

 

fonte: http://www.revistafoco.com.br/Foco_edicao_novembro/htm/pedro_gordilho.htm#