
O
Tabaco e a Alma
Texto de Michel P. Foley (Publicado na revista First Things n.72, Abril de 97).
Tradução e Notas de Márcio Umberto Bragaglia.
A
atual, barulhenta e irresponsável [1]campanha
mundial contra o fumo não só incutiu dolorosamente em quase todas as pessoas o
medo dos efeitos do tabaco sobre o corpo humano, mas também serviu para
obscurecer a mais profunda das razões de popularidade do ato de fumar: sua relação
com nossa alma. Enquanto os dias de glória do fumo passam para as cinzas da
história, é o momento de refletirmos sobre sua conexão com o espírito
humano.
Obviamente,
a alma é algo de grande complexidade. Há muito tempo Platão sugeriu que nós
considerássemos a alma como sendo dividida em três partes: a
vegetativa-sensorial, a espiritual (ou sensitiva) e a racional[2],
correspondendo cada parte com uma das três categorias básicas de desejos
humanos, quais sejam: o desejo da satisfação dos apetites físicos, o desejo
pelo reconhecimento perante as demais pessoas, e o desejo de conhecer a Verdade.
Desde que nos lembremos desta divisão proposta pelo filósofo, podemos entender
melhor a relação que existe entre o consumo de tabaco e a alma humana: as três
formas mais comuns de fumá-lo - cigarros, charutos e cachimbos, correspondem
respectivamente a cada uma das três partes da alma.
Os
cigarros correspondem à parte vegetativa, (o apetite sensorial) da alma, fato
que explica sua corrente associação tanto com a comida quanto com o sexo. A
conexão sexual é particularmente óbvia: pense no famoso “fumar um
cigarrinho” após o coito, ou na presença invariável dos cigarros nos bares
para solteiros.
Pessoas
com fortes desejos físicos demandam satisfação instantânea, e tentam tornar
o que desejam parte de seus corpos, ao máximo possível: a fome requer comer, a
sede beber, e a luxúria tornar o corpo do amante parte de seu próprio corpo.
Isso vale para os cigarros. Um cigarro é tragado: é necessário que seja
consumido completamente no interior do indivíduo para provocar o prazer. Um
cigarro, com sua rápida finalização, igualmente
é satisfação instantânea. Até mesmo a notória conexão entre o cigarro e a
morte pode ser entendida como um apetite – ambos são indiferentes em relação
à saúde de seu objeto no que tange à satisfação, e ambos, quando atingem o
nível final, tornam-se hostis ao indivíduo, fatais.
Os
Charutos, por outro lado, correspondem à parte espirituosa, sensitiva, da alma.
Isto explica porque são tão populares entre homens que procuram honra e reputação
- políticos, executivos, etc. A razão para esta correspondência pode ser
encontrada na similaridade que há entre os charutos e a ambição. Um charuto
impressiona, visualmente falando: com seu grande tamanho e suas enormes nuvens
de fumaça, geralmente causa um impacto maior no expectador do que no próprio
fumante. Está mais ligado ao poder masculino do que à sua satisfação
propriamente dita. “Testis”, em latim, significa “testemunha”: a
aparência fálica do charuto serve para demonstrar ao público que testemunha a
virilidade do fumante, sua potência. O fato de que o charuto não é inalado
reflete esta abordagem exterior, superficial.
A
ambição também tem estas características: é muito mais exterior do que
interior. Diferentemente dos desejos físicos, que são satisfeitos pelo simples
consumo, a ambição requer o consenso e o reconhecimento de terceiros. Os
homens que procuram as honrarias, por exemplo, necessitam se sentir reconhecidos
pelo maior número de pessoas possível para satisfazerem suas demandas de caráter.
Finalmente,
o cachimbo corresponde à parte racional da alma, o que explica porque tendemos
a representar pessoas sábias fumando cachimbos: o estudioso, em Oxford, cercado
por seus bons livros, ou Sherlock Holmes, que, nas histórias originais de Conan
Doyle também fumava outras formas de tabaco[3],
mas que, graficamente, é quase
sempre representado na companhia de um cachimbo. Diferentemente dos cigarros e
charutos, o cachimbo persiste, não se consome. Similarmente, as questões que
intrigam o filósofo em muito superam tanto os menores desejos físicos quanto
as ambições humanas relativas ao status social. Ainda, enquanto o charuto é
completamente masculino, o cachimbo tem elementos masculinos e femininos (a
piteira e o fornilho, respectivamente). Isto corresponde à atividade
intelectual do filósofo, que é tanto masculina quanto feminina: masculina no
que tange à procura pela “Verdade Absoluta”, e feminina na sua característica
de ser receptivo à tudo que dele descobre. Finalmente, o efeito do cachimbo nas
outras pessoas é análogo ao efeito da filosofia: o adocicado aroma de um
cachimbo, como a boa filosofia, é uma benção para todos que se aproximam.
É
apropriado que todos os três referidos tipos de consumo do tabaco envolvem o
uso do fogo, pois cada um deles se relaciona com o nível de resposta da alma ao
apelo da razão, e o fogo, pelo menos desde os dias de Prometeu, é o emblema
mitológico da razão. Mas também há partes não humanas na alma do homem[4].
O crescimento dos cabelos e das unhas, por exemplo, se deve à atividade da alma
(vida), mesmo que não se relacione com o comando da razão.
O
uso do tabaco que não envolve o fogo, portanto, de certo modo corresponde a
estes elementos não-humanos, ou mais precisamente sub-humanos da alma. Mascar
tabaco, por exemplo, é uma atividade sub-humana por definição. É a ruminação
do homem bovino. Ou talvez, devêssemos dizer do homem camelo, pois os camelos não
só mascam, mas também cospem. De qualquer modo, a idéia é clara: mascar o
tabaco é uma atividade sub-racional, e por isso nós normalmente à associamos
aos homens mais brutos e menos intelectualmente refinados.
Cheirar
(aspirar) o tabaco também pode ser classificado nesta categoria, mas com
algumas pequenas diferenças. Primeiro, porque, não sendo tão repugnante, não
carrega o mesmo grau de conotação negativa do processo de mascar o tabaco.
(Obviamente, as atividades podem ser sub-racionais sem serem más). Em segundo
lugar, aspirar pelo nariz não é atividade que se possa categorizar no mesmo nível
das anteriores. Todas as formas já discutidas envolvem a boca, o que é mais
natural, já que a boca foi feita para receber coisas dentro de si. Mas aspirar
algo diferente de ar para dentro do nariz, isso já não é tão natural assim.
(...)[5]
Como
todo leitor de Platão sabe, o que tem relação com a alma tem necessariamente
relação com a cidade[6]. Logo, se nossa teoria é
mais do que a fumaça que pretende explicar, ela pode ser usada na análise de
alguns fenômenos políticos contemporâneos. Por exemplo, nos últimos anos
temos testemunhado um esforço de ajuste social que objetiva esterilizar nossas
relações eróticas, diminuindo seu perigo, mas também seu vigor.
As
vazias e desestimulantes palavras que usamos para referenciar estas ligações
confirmam nossa hipótese. Ao invés de “amante” e “amado”, por exemplo,
nos referimos a “parceiro” (termo que retira das questões do coração toda
excitação, aproximando a tão emocionante matéria da frieza das relações
comerciais). Considerando este ambiente social deliberadamente alterado, não é
de se espantar que nossa guerra moral mais violenta nos dias atuais seja contra
os fumantes e cigarros, nem que a única guerra tão intensa que a sociedade
trava seja a favor do “sexo seguro”, de preservativos que não esterilizam o
sexo apenas no sentido literal, mas também metafórico.
Além
disto, a relação que há entre os charutos e as pessoas fracas, em busca de
reconhecimento social, explica o crescimento significativo do incremento de
fumantes de charuto do sexo feminino. Como as mulheres continuam a penetrar em
mundos de competição social tradicionalmente dominados pelos homens[7],
muitas estão os vencendo em seu próprio jogo, utilizando-se das mesmas técnicas
de incremento de poder, e, com as técnicas e táticas vêm os símbolos.
Mais
significativa, entretanto, é a relação entre a raridade numérica dos
fumantes de cachimbo na América, e a crise intelectual que o país enfrenta. Se
o cachimbo enfatiza um modo de vida intelectual e racional, é de espantar que não
possa ser encontrado em um país no qual as escolas substituem a filosofia real
pela ideologia do “politicamente correto”, onde a inteligentsia, ao
invés de se engajar no pensamento aprofundado, tende para o ativismo irresponsável?
É surpresa que o mais famoso fumante de cachimbo dos EUA nos últimos trinta
anos seja HUGH HEFNER[8],
profeta banal do hedonismo? Não, a era dos fumantes de cachimbo está tão
longe de nós quanto o dia em que os filósofos serão reis e os reis irão
filosofar – uma realidade triste que a densa neblina azul dos cigarros e
charutos é a única a atestar.
Também não é de nos surpreender, nesta era sem cachimbos, que a batalha feroz travada contra o tabaco perdeu o ponto relevante sobre seu poder de viciar: o tabaco influencia a alma tanto quando o faz ao corpo. As qualidades que ele a faz incorporar nas suas formas variadas o torna um complemento irresistível para os desejos dominantes da alma de cada um. Como reagimos a estas influências diz muito do nosso posicionamento pessoal em relação ao que moralmente desejamos, talvez tanto quanto diz a erva aos desejos do corpo, por si só.
[1]
O autor utiliza o termo brouhaha para qualificar a campanha contra o
fumo. Significa um distúrbio relevante, muito mais do que os méritos da
discussão que o gerou. Preferi adjetivar, no mesmo sentido. (N.do T.)
[2] A divisão tripartite da alma, na abordagem do autor deste texto, se relaciona com a ética segunda a interpretação que Aristóteles adotou, modificando o escopo original da discussão em Platão. (N. do T.)
[3]
Holmes também apreciava um charuto ao investigar seus casos, conforme nos
ilustra a passagem abaixo, do conto The Sign of Four: “"Well,
Jonathan Small," said Holmes, lighting a cigar, "I am sorry that
it has come to this". (N.do T.).
[4] Alma em sentido platônico, o que, em diversos níveis, anima o corpo e o dá vida. Pode ser compreendida como uma essência adicional à matéria, presente nos vegetais, nos amimais e no homem. Cada nível de ser tem um incremente nestas categorias. Assim, as plantas possuem apenas a alma vegetativa, os animais a vegetativa e a sensibilidade, e os homens as duas, mais a razão.
[5]
Neste trecho, o autor se desvia um pouco do assunto e trata de diferenciar a
maconha do tabaco. Para nós, fumantes apenas deste último, não há a
menor necessidade de enfatizar-se a qualidade deste e os efeitos desprezíveis
daquele, que, segundo o autor, se resumem no seguinte: “enquanto o
cigarro, o charuto e o cachimbo soltam a língua apenas o suficiente para
estimular a boa conversação e a amizade, a maconha desprende a língua do
cérebro, afastando a razão”.(N.doT.)
[6]
No sentido grego, é claro, com o Estado, a comunidade politicamente
organizada. Aí vem a introdução da discussão política deste artigo.
(N.doT.)
[7] Ainda bem, penso eu! Ao contrário do que alguns consideram, o charme e a delicadeza feminina se adaptam muito bem ao uso do cachimbo. (N.doT.)
[8] O fundador e editor da
revista Playboy, desde 1953.